Demétrio Magnoli: Em 2018, encararemos nossos próprios nacionalismos

Theresa May, a primeira-ministra britânica, anunciou o restabelecimento dos antigos passaportes britânicos azul-marinho. A restauração, explicou, é uma expressão de "independência e soberania" que reflete a "cidadania de uma grande, orgulhosa nação". Ficamos sabendo, assim, que os passaportes no estilo europeu, de cor vinho, introduzidos em 1988, indicariam a renúncia britânica à sua "independência e soberania", bem como a perda do orgulho nacional de seus cidadãos.
Foto: Jay Allen / Crown Copyright
Foto: Jay Allen / Crown Copyright

Theresa May, a primeira-ministra britânica, anunciou o restabelecimento dos antigos passaportes britânicos azul-marinho. A restauração, explicou, é uma expressão de “independência e soberania” que reflete a “cidadania de uma grande, orgulhosa nação”. Ficamos sabendo, assim, que os passaportes no estilo europeu, de cor vinho, introduzidos em 1988, indicariam a renúncia britânica à sua “independência e soberania”, bem como a perda do orgulho nacional de seus cidadãos.

“É uma expressão do quão embusteiros, tolos e paroquiais nos exibimos perante o mundo”, replicou Ed Miliband, ex-líder do Partido Trabalhista, referindo-se ao alarido nacionalista provocado pela mudança. Padrões de passaporte não têm relação com soberania. O documento de cor vinho não é uma exigência da União Europeia (UE), mas uma mera sugestão de harmonização conveniente –tanto que a Croácia emite passaportes europeus azuis.

As características formais dos passaportes, no mundo inteiro, não derivam de decisões nacionais soberanas, mas de antigos tratados diplomáticos (a Conferência sobre Passaportes e Alfândegas, da Liga das Nações, de 1920), de acordos no âmbito da Icao (Organização Internacional de Aviação Civil) e de normas de leitura eletrônica de documentos oriundas dos EUA.

May e seu cortejo de fanáticos do Brexit desvelam um tom de azul: o azul do ridículo. Mas o nacionalismo exprime-se em diferentes tonalidades. Carles Puigdemont, o destituído chefe do governo catalão, pronuncia-se exclusivamente em língua catalã, escolhendo ignorar tanto a lei bilíngue da Catalunha quanto o fato de que cerca de um terço dos cidadãos da região só compreende o espanhol.

Já Núria de Gispert i Català, ex-presidente do Parlamento catalão, uma convicta separatista de sobrenome fidalgal, convidou Inés Arrimadas, líder regional do partido Cidadãos, a “voltar para Cádiz”. Arrimadas fez campanha pela unidade espanhola –e seu partido foi o mais votado na Catalunha. Mas, pecado!, ela carece de sobrenome ou “sangue” catalão, pois nasceu na Andaluzia, como tantos habitantes de Barcelona.

“O nacionalismo é a guerra”, fulminou Emmanuel Macron, o presidente francês, num debate com a populista de direita Marine Le Pen, recordando-lhe algo que nenhum europeu tem o direito de esquecer. O azul do nacionalismo catalão é azul e branco (na versão de direita da bandeira separatista) ou amarelo e vermelho (na versão de esquerda da mesma bandeira), mas sempre étnico, nativista e excludente. Há ridículo, aí, mas apenas enquanto a democracia espanhola for capaz de conter sua pulsão violenta, supremacista.

Escalas de azul: do ridículo ao abjeto, e dele ao repulsivo. Hungria e Polônia têm governos populistas de direita que zombam dos valores pluralistas da UE, consagrando-se à “guerra de civilizações”. O húngaro Viktor Orban prega, desde 2015, a defesa da “cultura cristã europeia” contra a “invasão muçulmana”.

O governo polonês engaja-se em operação destinada a subordinar o Judiciário e a imprensa a sua vontade, enquanto seu líder de facto, Jaroslaw Kaczynski, atribui-se a missão de “mostrar à Europa doente de hoje o caminho da saúde, dos valores fundamentais e de uma civilização mais forte baseada no cristianismo”. Durante seu discurso, no Dia da Independência, 60 mil pessoas marcharam juntas com dois grupos ultranacionalistas aos gritos de “sangue puro” e “a Europa será branca ou será abandonada”.

Às vezes não parece –mas, apesar de tudo, o Brasil, faz parte do mundo. Nesse 2018, encararemos nossos próprios tons de azul. O azul vermelho, de Lula (ou de uma imagem holográfica dele), é o nacionalismo paternalista, patrimonialista, nostálgico do varguismo. O azul marrom, de Bolsonaro, é o nacionalismo autoritário, intolerante, nostálgico da ditadura. Feliz 2018 para você também.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional. Escreveu, entre outros, ‘Gota de Sangue – História do Pensamento Racial’ e ‘O Leviatã Desafiado’.

 

 

 

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