‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O mantra de Bolsonaro é mais do que parece. A invocação da fé religiosa pontilha os discursos oficiais, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando pelo ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, por atos ou palavras, o governo insiste nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o Hino Nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?
As pessoas cultas inclinam-se a descartar isso tudo, transferindo a ladainha carola e nacionalisteira para o arquivo morto dos anacronismos. De modo geral, não se atenta ao sentido mais profundo dessas exaustivas referências: o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.
Há algumas décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto o ácido da ironia dissolvia a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.
A direita populista manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua faceta oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua faceta pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos —ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” — pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum — e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.
As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) mas, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” de Bolsonaro também desempenha dois papéis. Na sua face escura, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na sua face luminosa, porém, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.
No plano filosófico, a doutrina do multiculturalismo enfraqueceu os pilares dos direitos humanos. A condição humana foi rebaixada ao estatuto de mito liberal, abstração destinada a esconder as singularidades étnicas, raciais ou culturais. A direita populista nutre-se dessa renúncia à humanidade universal para negar os direitos dos “indesejáveis”, sejam eles imigrantes, refugiados, gays ou marginais.
No plano político, o multiculturalismo abandonou a ideia de unidade, que se conecta estreitamente à de igualdade. O conceito de unidade nacional, fundado no contrato de cidadania, foi reinterpretado como ferramenta de exclusão das minorias. O populismo de direita ocupou a trincheira deserta para embrulhar a unidade no celofane da autoridade. Na sua equação, o governo identifica-se com a nação, e a divergência política transforma-se em traição.
Bolsonaro não está só. Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhadas por Donald Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e Matteo Salvini, na Itália. O comboio populista avança pelas clareiras desmatadas no longo intervalo de abjuração multiculturalista. A direita autoritária sequestrou os estandartes da igualdade e da unidade. Foi fácil: ninguém mais cuidava deles.