Demétrio Magnoli / O Globo
A queda de Cabul, no 15 de agosto, 76º aniversário da rendição japonesa, “pode ser interpretada como o fim do segundo período de orgia estratégica dos EUA”, escreveu Shen Yi no Global Times. O jornal é um veículo em língua inglesa de propaganda nacionalista da China, e Shen Yi quase certamente é um pseudônimo inspirado no nome de um arqueiro mitológico chinês. A China teme que o novo regime afegão provoque ondas de instabilidade na Ásia Central, mas celebra a derrota histórica dos EUA.
Segundo Shen Yi, a hegemonia americana desde 1945 compõe-se de ciclos de expansão-orgia-contração. O primeiro ciclo iniciou-se com o envolvimento no Vietnã e culminou com a queda de Saigon, em 1975, que provocou um prolongado recuo. O segundo começou em 2001, com as intervenções no Afeganistão e no Iraque, esgotando-se agora, sob o impacto da humilhação imposta pelo Talibã.
“Cabul não é Saigon”, garantiu Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, argumentando que foi cumprida a missão de suprimir as redes de terror responsáveis pelos atentados do 11 de Setembro. De fato, Cabul é pior que Saigon — e a China sabe disso. O Vietnã do Sul resistiu por dois anos após a retirada das forças americanas, enquanto o Estado afegão dissolveu-se antes da partida dos últimos contingentes militares ocidentais. Sob o Talibã, o terror jihadista tem condições propícias para se reorganizar no Afeganistão.
Os EUA cometeram um erro estratégico maior no Afeganistão, derivado do pecado da húbris. Depois da derrubada do Talibã, converteram o país em semiprotetorado americano. À sombra das tropas americanas e da Otan, ergueram um sistema político e construíram um Exército afegão. Rússia, China, Irã e Paquistão tinham interesse direto na estabilidade regional — na eliminação dos jihadistas do núcleo geográfico da Ásia Central. Mas, sob a “orgia” neoconservadora, os EUA preferiram caminhar sozinhos — e hoje colhem os frutos amargos daquela escolha.
Joe Biden adicionou, ao erro estratégico, o equívoco tático fatal de curvar-se ao acordo de retirada firmado por Donald Trump com o Talibã. Na prática, o acordo implicava o abandono das forças militares afegãs, que dependiam de logística e apoio aéreo oferecidos pelos EUA e pela Otan. A rendição sem combate do Exército afegão, álibi repetido sem cessar por Biden, foi prevista pela inteligência americana. As cenas de caos na capital afegã são o produto inevitável dos atos convergentes do republicano e do democrata.
O equívoco tático reflete algo mais profundo. Como no Vietnã, a sociedade americana cansou-se da longa guerra travada em terras distantes, revertendo ao isolacionismo. Sob esse aspecto decisivo, Trump triunfou — e os EUA perderam. É isso que a China celebra, pela voz de Shen Yi.
Na Guerra do Golfo de 1991, auge da hegemonia americana, George H. Bush seguiu a Doutrina Powell. Os EUA conduziram uma ofensiva devastadora, alcançaram o objetivo estratégico, e concluíram a operação com rápida retirada do Iraque. Na década seguinte, George W. Bush desviou-se da trilha do pai, embrenhando-se na aventura da “reforma do mundo” pregada pelos neoconservadores. As ocupações do Afeganistão e do Iraque foram justificadas pela ambição desvairada de edificar democracias protegidas pelas baionetas americanas. O 15 de agosto de Cabul assinala o fracasso definitivo da doutrina neoconservadora.
O passado pesa como rocha sobre o presente. Durante 20 anos, milhões de afegãos, especialmente as mulheres, experimentaram direitos e liberdades que os EUA prometeram perenizar. Biden simula amnésia, insistindo na ficção de que a presença das forças ocidentais no Afeganistão destinava-se exclusivamente a combater a ameaça internacional jihadista. Os afegãos que tentam escapar para o aeroporto ou erguem a bandeira nacional em perigosas manifestações de rua não esqueceram.
Traição — eis o nome aplicado à retirada americana pelos afegãos deixados para trás e pelas mulheres que encaram a perspectiva de um novo confinamento doméstico. O arqueiro chinês comemora a traição dos EUA, que o mundo inteiro viu.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/depois-da-orgia-estrategica.html