Profecia de H.L. Mencken escrita em 1920 realizou-se com a eleição dos dois presidentes
“À medida em que a democracia é aperfeiçoada, o cargo de presidente representa, cada vez mais adequadamente, a alma profunda do povo. Em algum grande e glorioso dia, a gente simples dessa terra realizará, finalmente, a plenitude de sua vontade e a Casa Branca será adornada por um completo idiota.” A profecia, de H.L. Mencken, foi escrita em 1920, durante uma cinzenta campanha eleitoral, e realizou-se em 2016, com Trump (e, no Brasil, dois anos depois, com Bolsonaro). A culpa é mesmo da “gente simples” dessas terras?
O termo “idiota”, de raízes gregas, foi usado, num passado já distante, como diagnóstico psicológico do indivíduo com moderada incapacidade intelectual. Os psicólogos o abandonaram e ele passou a descrever uma pessoa estúpida ou, ainda, alguém presunçoso. Os dois qualificativos aplicam-se aos ocupantes da Casa Branca e do Planalto.
Mencken, porém, não escrevia sobre algum presidente singular, mas sobre a democracia e a “alma profunda do povo”. Será que tinha razão?
Na sua frustrada campanha presidencial, saiu da boca de Hillary Clinton o adjetivo “deploráveis” para fazer referência aos eleitores de Trump —que não eram a maioria numérica mas constituíram a maioria eleitoral. Nos fóruns petistas brasileiros, diante do triunfo de Bolsonaro, não faltaram acusações ao povo “ingrato” (além das rituais condenações à “mídia”). Hoje, frente a uma parcial recuperação da popularidade do presidente, não poucos analistas sugerem que o fenômeno derivaria da “compra de consciências” pelo auxílio emergencial. O povo tem, então, os idiotas que merece?
O populista venera o povo. Mencken, exato oposto, enxerga a sociedade pelas lentes de um plebeu aristocrático. O erro dele mereceria extenso exame filosófico mas, na prática, empresta um álibi às elites políticas bem pensantes: a culpa pela ascensão dos idiotas não seria delas, mas da “gente simples” incapaz de distinguir os bons dos maus.
Os bons precisam de um espelho. Nos EUA, os democratas batidos em 2016 ignoraram, anos a fio, a maioria do eleitorado branco do Meio-Oeste, que forma uma classe média açoitada pela transição tecnológica e pela crise estrutural da indústria tradicional. O partido contava com as graças da alta finança e falava para uma nação imaginária, definida como coleção de minorias. Trump venceu esgrimindo um discurso nativista, conspiratório e preconceituoso que apelava aos ressentimentos do “americano esquecido”. Eleitores democratas desencantados refugiaram-se atrás do candidato da direita nacionalista, fazendo as diferenças mínimas que decidiram a eleição. Quem, na esfera política, agiu como idiota?
As fontes circunstanciais de Bolsonaro encontram-se no populismo fiscal dilmista, na exposição da macrocorrupção, na estratégia eleitoral de Lula e até na facada de um ninguém. Mas suas fontes profundas têm algo em comum com as de Trump.
No Brasil governado pelos bem pensantes, o Estado foi capturado por poderosos grupos empresariais e corporações do alto funcionalismo. Ao longo da bonança internacional que acompanhou os governos de esquerda, as castas de privilegiados receberam créditos, financiamentos, isenções, gordos salários e benefícios, às custas da saúde, da educação, do transporte de massa, dos equipamentos culturais. Como moeda de troca eleitoral, os pobres ganharam o Bolsa Família. A ascensão do idiota estava escrita nas estrelas.
A política da idiotia tem duas faces. O Bolsonaro que circula sem máscara entre ambulantes, enquanto emite cheques emergenciais, só ganha pontos porque, do lado oposto, os bem pensantes fingem residir na Nova Zelândia e clamam por quarentenas eternas. A “gente simples” dessas terras já elegeu Collor, FHC e Lula, Maluf, Erundina e Marta, Haddad, Serra e Doria. O idiota não é produto de sua “alma profunda”, mas da idiotia dos bacanas.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.