Benedita da Silva e Luís Roberto Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como uma carreira
“Estaremos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores.” O ministro Luís Roberto Barroso anunciou, por essa frase capciosa, a pretensão dos altos tribunais de tutelar os partidos políticos e os eleitores, determinando uma distribuição racial dos fundos públicos eleitorais.
O inevitável avanço da doutrina racialista para a esfera da representação política golpeia o conceito de soberania popular, pilar da democracia.
A discussão jurídica nasceu de um pedido aos tribunais da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), pelo estabelecimento de cota de 30% de “candidaturas negras” em cada partido. Barroso disse “não”, argumentando que só o Congresso tem a prerrogativa de legislar.
Mas, como é de seu feitio, prontificou-se a legislar de outro jeito, no mesmo rumo racialista, gerenciando o caixa dos partidos com vistas a um “equilíbrio racial”.
As leis de cotas raciais para ingresso nas universidades apoiam-se na justificativa da promoção social de grupos excluídos. As cotas raciais dividem os estudantes de escolas públicas segundo a cor da pele, alavancando ressentimentos que nutrem o racismo. O consenso partidário formado em torno delas destina-se a mascarar a ruína do ensino público, raiz da desigualdade de oportunidades no umbral das universidades. Quando a raça chega ao terreno do voto, o racialismo retira sua máscara, exibindo a face que precisava ocultar.
Benedita e Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como o ingresso na universidade —ou seja, como uma carreira. A política é definida, aí, como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio.
“Escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores” significa, para eles, alçar “negros” a empregos bem remunerados. O problema do raciocínio é que, no fim, a seleção desses “profissionais” depende dos eleitores. Que tal, então, dirigir a mão que digita o voto para o lugar “certo”?
Os programas pioneiros de cotas raciais nas universidades foram introduzidos em 2003. Seus defensores alegavam, à época, que o expediente seria provisório, esgotando-se no horizonte de dez ou, no máximo 20 anos. Hoje, quase duas décadas depois, não só esqueceram-se do prazo limítrofe como engajaram-se na introdução de cotas raciais na pós-graduação e na administração pública.
A fraude da vontade popular na esfera eleitoral também caminhará por etapas. A primeira, em curso, define a distribuição de fundos de campanha. Numa segunda, cotas “raciais” dentro dos partidos. A conclusiva, pelo estabelecimento de cotas raciais nos próprios órgãos legislativos. No Líbano, a representação parlamentar é repartida segundo linhas sectárias, com a divisão de cadeiras entre cristãos, sunitas e xiitas. No Brasil, a lógica racialista aponta para uma divisão entre as “raças oficiais” —isto é, basicamente, entre “brancos” e “negros”, pois os autodeclarados “pardos” já foram administrativamente suprimidos do universo legal.
A “voz dos negros” deve ser ouvida —eis a tradução conceitual da frase de Barroso. Os “negros”, porém, participam de diferentes partidos, exprimindo ideologias diversas. Quem é a “voz dos negros”? Benedita, que é uma “voz de Lula”, ou Sérgio Camargo, uma “voz de Bolsonaro”? A racialização dos órgãos legislativos nada tem a ver com a “voz dos negros”. Expressa a voz das elites brasileiras que recobrem, com uma mão de tinta fresca, o racismo institucional praticado pelas polícias e a exclusão social de pobres de todas as cores.
A política é o campo dos valores, das visões de mundo —não das raças. A “voz dos negros” exigiria a constituição de um Partido Negro. Os arautos do racialismo não vão criá-lo, pois sabem que seriam rejeitados inclusive pelo eleitorado não branco. A estratégia deles é tutelar o voto por meio de leis restritivas da soberania popular.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.