O que o brasileiro diz é que a roda de um caminhão esmagou o sistema político
Decifra-me ou devoro-te! Segundo o Datafolha, 87% dos brasileiros aprovaram o movimento que paralisou o país durante uma semana e 56% defenderam sua continuidade. Ao mesmo tempo, 87% rejeitaram os aumentos de tributos e cortes de gastos públicos necessários para atender às reivindicações do movimento —e 56% avaliaram que o resultado é prejudicial ao “brasileiro em geral”. A “voz do povo” não faz sentido lógico. Mas há método na loucura.
Sondagens sobre a opinião subjetiva a respeito de eventos em curso são investigações complexas. A formulação intrínseca e a contextualização das perguntas têm forte impacto nas respostas. Uma pesquisa do Ideia Big Data, divulgada em O Globo e realizada dias antes, registrou desaprovação majoritária ao movimento (55%). Não há, porém, como fugir ao desafio da esfinge expresso pela contradição interna exposta no relatório do Datafolha. Atrás dela, distinguem-se os contornos da ruína de nosso sistema político.
Greve é o eufemismo destinado a ocultar a precisa natureza de um locaute articulado entre as grandes empresas de transporte e setores politicamente organizados dos caminhoneiros autônomos. O movimento tornou letra morta o direito de ir e vir, provocou o colapso de atividades essenciais, causou perdas universais irreparáveis. À primeira vista, sacralizamos o “direito de manifestação”, elevando-o ao estatuto de dogma e aceitando que seu exercício extremado implique a abolição de todos os outros direitos. De certo modo, absorvemos a pedagogia do lulopetismo, que serve hoje ao bolsonarismo: o “povo organizado”, a corporação, vale mais que a nação.
O “brasileiro em geral” é o povo desorganizado, o cidadão comum. Os “brasileiros em geral”, alvos da sondagem do Datafolha, habituaram-se à ideia de que os interesses privados sempre triunfam. Os políticos beneficiam-se de propinodutos subterrâneos. Os empresários, de subsídios oficiais, refinanciamentos de dívidas, contratos superfaturados. Os juízes e promotores, de rendas privilegiadas, como a exorbitância do auxílio-moradia. Se as corporações de fidalgos podem, por que não a corporação dos caminhoneiros, que são gente comum? No elogio da baderna, avulta uma ânsia por igualdade.
Traçam-se paralelos errados, que contêm grãos de verdade relevante. O maio de 2018 não é, nem de longe, a retomada do junho de 2013. De fato, sob um aspecto decisivo, um evento representa o oposto do outro. “Brasil, é hora de acordar: o professor vale mais que o Neymar” —cinco anos atrás, na Paulista, protestava-se contra a subordinação do bem público ao interesse privado.
Agora, nas estradas interrompidas, exigiu-se o bem privado, às custas da imolação do interesse público. A desoneração da folha das transportadoras, o tabelamento do frete, a contratação de transporte sem licitação, o controle do preço do diesel serão pagos por mais impostos, mais inflação, menos educação e menos saúde. Mas, na percepção da maioria, dessa vez, para variar, triunfou uma “corporação dos humildes”. Somos todos caminhoneiros —eis uma mensagem expressa nas estatísticas do Datafolha.
Os grãos de verdade espalham-se além dessa constatação. Nas “jornadas de junho”, em 2013, o povo nas ruas dobrou a arrogância do governo, estragando a festa nacionalisteira da Copa.
Agora, nas estradas, segundo a interpretação predominante, o governo sofreu uma humilhação inédita, rendendo-se a gente sem sobrenome, sem rosto, sem cargo, sem partido. “Não aceitamos pagar a conta da derrota do governo” —o pensamento mágico, a dissociação absoluta entre causa e efeito, faz parte do raciocínio. Na visão da maioria, o mundo das regras cedeu lugar à regra da força.
O governo acabou? Sim, claro, mas isso é só o óbvio. Na véspera das eleições, o povo está dizendo que a roda de um caminhão esmagou todo o sistema político.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.