Como petistas, bolsonaristas tacham adversários de ‘inimigos do povo’
As savanas, como o nosso cerrado, são ambientes sujeitos à combustão espontânea —mas a maior parte das queimadas “naturais” nascem de um foco de fogo humano, que pode ser um fósforo aceso ou a bituca de um cigarro.
Na política, quase nada é espontâneo. A ofensa lançada pelo advogado Cristiano de Acioli ao ministro do STF Ricardo Lewandowski no espaço restrito de uma aeronave não foi um gesto impulsivo de indignação, mas um ato inscrito numa estratégia política.
No episódio, de fortuito existiu apenas o encontro com o ministro num voo de carreira.
Não fosse aquele dia, seria outro. Não fosse Acioli, seria outro. A frase ofensiva circula há tempo, como mantra, nos blogues e redes sociais bolsonaristas. No dia seguinte ao episódio, ressurgiu como projeção de luz na fachada do edifício do STF, por obra do MBL.
Acioli agiu como militante, ativando previamente seu celular para registrar a cena, a fim de difundi-la nos territórios da “guerrilha da informação”.
Para livrar-se de acusações legais, o militante bolsonarista alega que seu alvo era a corte suprema, não a pessoa de Lewandowski. Mas —com o perdão de Derrida— o texto nada significa sem o contexto.
A “vergonha de ser brasileiro” de Acioli relaciona-se aos votos e opiniões de Lewandowski, de Gilmar Mendes e de Toffoli, não aos de outros integrantes do STF. O problema dele —um advogado!— é a existência do habeas corpus e, de modo geral, do devido processo legal.
O governo Bolsonaro é, sob certo sentido, o fruto maduro da “era do lulismo”. Da militância petista, os bolsonaristas aprenderam a demonizar a opinião divergente e a exibir seus adversários como “inimigos do povo”.
A prolongada pedagogia do PT os ensinou a constranger publicamente os “desviantes”, para depois difamá-los no conforto anônimo das redes sociais. O lulismo tinha seus blogueiros de estimação; o bolsonarismo já os tem. Nas artes da “guerrilha da informação”, os alunos já ultrapassaram seus mestres.
O PT inspirou-se na tradição do castrismo para promover “atos de repúdio”. O bolsonarismo reativa a prática, talvez sem conhecer sua origem.
Acioli, muito esperto, não gravou tudo. Depois da provocação registrada, ele conclamou os passageiros a vaiarem Lewandowski. O “indignado” Acioli é um farsante —tanto quanto os “indignados” petistas que injuriaram a blogueira cubana Yoani Sánchez em 2013 ou os que vandalizaram a mesa de debate na qual eu estava, numa festa literária na Bahia, no mesmo 2013.
Na Cuba castrista, o “ato de repúdio” contra dissidentes é uma rotina semioficial, patrocinada pelos Comitês de Defesa da Revolução, ou seja, pelo partido único.
Por aqui, é um evento político que precisa ocultar sua natureza. Sem o amparo formal do Estado, a militância envolvida invoca o princípio da liberdade de expressão. Foi sob esse pretexto que uma matilha de delegados ao congresso do PT afogou em insultos a jornalista Miriam Leitão, casualmente também durante um voo de carreira. Acioli, o bolsonarista, é um petista tardio.
No Brasil, é livre a crítica ao STF, como a qualquer de seus juízes. Acioli tem o direito de escrever que a corte é uma vergonha ou que os votos de Lewandowski o envergonham. Ninguém lhe negará a prerrogativa de falar isso tudo em espaços apropriados de debate.
Mas, como os demais, a liberdade de expressão é um direito relativo, que convive com outros. Acioli sequestra a palavra liberdade quando a utiliza para fantasiar a ofensa, o constrangimento público e a violação da privacidade.
O bolsonarismo nutre-se da intolerância raivosa, tanto quanto antes nutriu-se o lulismo. A agressão a Lewandowski parece singular, até admissível, pois se trata de uma autoridade.
As aparências enganam: hoje é ele; ontem fomos eu, Yoani e Miriam Leitão; amanhã é você. Os alunos imitam seus mestres —e os superam.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.