“O nióbio vale mais do que o ouro”, anunciou Jair Bolsonaro, meses atrás, acusando os “interesses estrangeiros” de se beneficiarem da demarcação de terras indígenas na Amazônia.
Bolsonaro não desistiu de sua obsessão nacionalista pelo minério, mas instalou-a na retaguarda de um discurso econômico de tons liberais, que procura conectar à defesa de valores conservadores.
A salada ideológica incongruente responde a uma estratégia eleitoral definida, cuja eficácia mantém relação inversa com a estabilidade de nossas instituições políticas. Nela, o dado mais curioso é o flerte de grupelhos ultraliberais ativos nas redes sociais com um candidato que não oculta sua nostalgia do regime militar.
Minérios e combustíveis fósseis são objetos de fetiche dos nacionalistas. Incapazes de compreender que a riqueza é uma relação social dependente da produtividade geral da economia, eles se apegam ao “concreto”. Infantilmente, imaginam a riqueza como um tesouro que precisa ser protegido da sanha do inimigo externo: a salvação pelo nióbio inscreve-se na tradição do “petróleo é nosso” e da “defesa do Pré-Sal”.
Bolsonaro poderia optar pela combinação coerente do ultranacionalismo com o conservadorismo fundamentalista. Mas, para se credenciar como candidato respeitável, adicionou à equação uma coleção de claudicantes sentenças econômicas liberais. E —surpresa!— encontrou eco entre nossos liberais.
No papel, liberais são inimigos jurados da opressão estatal contra os indivíduos —e, portanto, arautos de três ordens de liberdades: econômicas, políticas e individuais. Nos EUA, contudo, uma vertente liberal associou-se aos cristãos conservadores para empreender a cruzada intolerante da “guerra de valores”.
O governo Trump é um fruto estranho, e inesperado, da profana aliança de duas décadas. Nossas seitas liberais, reforçadas pelo advento do MBL, inclinam-se a mimetizar os americanos —e, perfiladas a Bolsonaro, deflagraram uma “guerra de valores” tupiniquim.
O bloco liberal-conservador aperta as teclas quentes do combate à corrupção e à criminalidade, que soariam eleitoralmente como as teclas geminadas da imigração e do terrorismo na Europa ou nos EUA. Para a imitação ser perfeita, clama-se por um direito irrestrito à posse de armas.
Sem ruborizar, os liberais de megafone solicitam a intervenção estatal nas salas de aula (Escola Sem Partido ) e um controle oficial à expressão artística (MAM ). O Estado deles deve ser, simultaneamente, mínimo (para assegurar as liberdades econômicas) e máximo (para limitar as liberdades individuais).
Nada mais fácil que apontar o tamanho do abismo entre os princípios liberais e a estratégia dos liberais bolsonaristas. Suspeito, porém, que o enigma tenha solução: uma falha filosófica profunda arrasta os supostos campeões das liberdades para as águas sujas do conservadorismo autoritário.
O austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), um dos “pais fundadores” do pensamento liberal contemporâneo, imaginava que a liberdade nascesse na esfera privada das relações de mercado, espraiando-se dali para a esfera pública das relações políticas. Mises exilou-se nos EUA, fugindo do nazismo.
O americano Milton Friedman (1912-2006), inspirador da “escola de Chicago”, não viveu sob o totalitarismo e, talvez por isso, deu um passo além, desvalorizando as liberdades políticas.
Friedman prontificou-se a oferecer conselhos econômicos à ditadura chilena de Pinochet e, mais tarde, ao regime comunista chinês. Sua justificativa: “Embora a liberdade econômica seja necessária para a liberdade política, o inverso não é verdadeiro: a liberdade política, ainda que desejável, não é necessária para que a economia seja livre”.
Minha tradução: nada melhor que uma tirania para impor um programa econômico ultraliberal. Nossos liberais bolsonaristas já têm o seu nióbio.