Por Morris Kachani, de O Estado de S. Paulo
Com a vivência de quem já participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso e torturado, passou 10 anos no exílio, revolucionou os costumes vestindo uma icônica tanga rosa na praia de Ipanema em 1980, primeiro ano da abertura após a anistia, fundou o Partido Verde, elegeu-se deputado, rompeu com o PT, abandonou a carreira política e hoje apresenta um belo programa de reportagens documentais na GloboNews, Fernando Gabeira oferece sua visão 360 graus sobre os primeiros 100 dias do governo.
Na última conversa que tivemos, antes da definição das eleições, você falou que a sobrevivência da democracia não estava ameaçada, mas sua qualidade sim.
Exatamente isso que está acontecendo. Até o momento não houve um passo que justificasse você dizer que houve um retrocesso democrático institucional. No sentido de que não foi feito nada que você pudesse apontar como ruptura com a democracia. Os contrapesos da sociedade brasileira continuam aí.
O Jean Wyllis por exemplo teve que sair do país. Não são sinais?
Lamento a saída dele. Há muita gente que se sente ameaçada no Brasil. Acho que a sensação de ameaça vem menos das instituições do que do clima de rivalidade nas redes sociais, o baixo nível de debate político que predomina no país. Naturalmente, o governo tem um papel na medida em que emergiu desse debate radicalizado. O general Mourão afirmou, recentemente, que o governo teria condições de dar segurança a ele. Não sei como isso seria feito. Acho, no entanto, que o melhor caminho é desanuviar o debate político, para que todos sintam-se seguros na expressão de suas ideias.
Sobre as redes sociais e o presidente…
A questão não é propriamente a rede social, a questão é de quem a usa e de como a usa. Se o Bolsonaro saísse do twitter, seria como tirar o sofá do sala. Porque ele ia continuar dizendo besteira em outros campos, em outras plataformas.
Nesse sentido eu acho que o erro mais condenável, que eu jamais vi em um presidente da república, e jamais creio que verei adiante, foi o fato de ele ter divulgado na conta dele um vídeo como o do golden shower. Eu não sou a favor de nenhum tipo de censura, mas eu sou favorável à ideia de que o presidente da República escolha os temas que vai difundir.
Eu acho que as redes sociais têm a ligação direta com a população, Bolsonaro inclusive está muito orgulhoso com o crescimento permanente nas redes sociais. Porque é uma forma também de procurar dizer o que o povo quer, de ganhar popularidade com uma série de medidas.
É por isso que o governo avança com uma série de medidas na área de costumes com debates ideológicos. É porque ele não sente avanço nas coisas materiais, objetivas.
Isso aconteceu muito com Jânio Quadros. Como ele não tinha um desenvolvimento fluido no governo, nas coisas que queria, ele trazia um tema de costume. Se ele tinha uma dificuldade na economia por exemplo, ele proibia o biquíni. Ou então ele proibia a briga de galo. Com isso ele deslocava a discussão e a transformava em algo que estava um pouco fora do centro das preocupações. Afasta o exame crítico, objetivo, do governo dele.
Como bateu pra você essa proposta de revisar o golpe de 64?(Risos)
Alguns deles acham que a história foi escrita de maneira unilateral e que não foram contemplados. Como o desejo de acabar com o comunismo, ou os que que sofreram alguma violência também. Mas para haver revisão histórica, é preciso de fatos e realidade.
O arranjo que fizemos com a anistia ampla, geral e irrestrita, foi uma forma de estabelecer um equilíbrio no qual o Brasil pudesse avançar democraticamente para outros momentos, e nesse sentido deu certo, nós conseguimos um período democrático grande da ditadura até hoje.
Acho que não tem sentido nesse momento discutir o governo militar, o golpe militar, porque daqui a pouco a gente vai chegar na Guerra do Paraguai, vai ficar todo mundo discutindo Guerra do Paraguai, com uma série de problemas caindo sobre nossas cabeças. No Rio de Janeiro por exemplo, eu vejo uma cidade sendo destruída, não vamos ficar discutindo quem ganhou a guerra do Paraguai…
Fazer isso é estar fora do mundo.
O relacionamento do governo com o Congresso anda complicado. O tom da discussão entre Bolsonaro e Maia, as gritarias nas sessões… Estamos em evolução ou indo pra trás?
Nós estaríamos indo para trás se fosse colocado imediatamente sem nenhuma máscara e reserva o sistema do toma-lá-dá-cá. Acho que Bolsonaro tentou uma forma que todos os candidatos novos tentariam necessariamente. Uma possibilidade de você fazer um governo de coalizão sem terminar em uma troca material, sem que envolvesse necessariamente um processo de corrupção. Eu acho que isso é uma coisa desejável.
No entanto eu acho que ao escolher um ministério longe das influências políticas mais imediatas, ele foi um pouco mais radical.
Um inovador bem intencionado saberia que sem o apoio do Congresso, não conseguiria fazer nada.
Esta semana ele colocou no Ministério da Educação um cara que não tem experiência na educação. Não tem sentido você fazer isso. Mesmo se ele tivesse uma grande experiência na educação, é necessário fazer uma consulta política. Se você tiver políticos com capacidade e com honradez, preparados para assumir o cargo, você tem que fazer isso.
Bolsonaro precisa buscar uma mediação entre a ideia de não tratar com os políticos, e o toma-lá-dá-cá. Ele não conseguiu formular isso no princípio e até agora está um pouco hesitante, embora recentemente tenha se aproximado um pouco mais do Parlamento.
Você acha que o Mourão é a voz do bom senso nesse governo?
Olha, acho que Mourão representa, ainda que não diretamente, a opinião de alguns generais que teriam um nível intelectual bastante diferente do Bolsonaro no meu entender. Eles têm uma experiência histórica maior, o Mourão por exemplo já serviu na Venezuela, conhece bem o problema de lá, o Heleno já esteve no Haiti, conhece bem os problemas de uma força de pacificação, o Santos Cruz já esteve no Congo também resolvendo problemas gravíssimos como comandante de uma força internacional.
São pessoas mais experientes do que o Bolsonaro, com conhecimento internacional maior que o de Bolsonaro e possivelmente com conhecimento do Brasil maior que o de Bolsonaro.
Então essas pessoas tendem a ter posições muito mais sensatas do que Bolsonaro e seus ideólogos.
Ele recebeu mais de 57 milhões de votos. Será que a sociedade brasileira compactua com sua ideologia?
A ilusão dele foi a de que por ter sido eleito, a sociedade brasileira na sua maioria estava afirmando suas ideias. Ele subestimou muito a carga antipetista enorme que havia no eleitorado dele. Ele não compreendeu que foi escolhido porque era quem tinha chances de derrotar o PT.
E ao não compreender isso e iniciar o governo com este tom e esta perspectiva, ele tem perdido muito apoio, e é hoje o presidente avaliado nos primeiros 100 dias como o mais impopular. A aprovação dele caiu brutalmente. É sinal de que ele está equivocado.
O que ele supunha ser um aval eleitoral para ele, ele não entendeu bem, continua achando que é um aval da sociedade para ele tomar essas posições. Como se a sociedade tivesse refletido sobre a construção ou a transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém. Não há uma reflexão na sociedade a esse respeito, me parece que o consenso está muito mais próximo do que existe hoje.
Ele está tomando posições que tem ideologicamente e que supõe que foram aprovadas nas urnas. Ele não foi eleito necessariamente por conta dessa visão ideológica e sim pela perspectiva de reconstruir o país a um nível de normalidade que as pessoas achavam que o governo do PT tinha tirado no final.
Outro dia li um artigo dizendo que talvez a Câmara passasse a decidir as coisas importantes e o presidente cada vez mais inexpressivo.
Acho que este ano de 2019 vai ser muito crítico. Não quero ser pessimista, mas acho que a crise vai ser a forma de governar.
Temer precisou se livrar de algumas acusações e negociar com o Congresso constantemente. O Congresso sentiu o poder dele ali. Quando ele sente o gosto de sangue, quando sente que o governo está fraco dependendo dele, ele passa a assumir progressivamente o espaço que às vezes é ocupado pelo próprio governo.
Quanto mais fragilidade, mais o Congresso vai ocupando esse espaço. Essa é a tendência.
Você acha que está havendo um desmonte do Estado brasileiro?
Não, não necessariamente um desmonte, mas eu acho que em alguns setores está havendo transformações perigosas, como no caso das relações exteriores, e no caso da educação.
Nesses dois setores há um impacto ideológico maior, muito maior do que a posição pragmática e necessária para conduzir as coisas.
No caso da política externa, você abandona uma linha tradicional, brasileira, construída ao longo de todo esse período, e não coloca no lugar nada, apenas algumas afirmações muito vagas.
Originalmente, seria importante uma aproximação maior com os Estados Unidos, mas essa aproximação não poderia ser uma aproximação que emulasse algumas posições americanas, sem que a gente tenha condições de ser os Estados Unidos.
Podemos ser aliados, mas somos um país com condições diferentes, ambições diferentes, interesses diferentes.
E o que foi colocado no lugar da política externa foi uma adesão ampla, uma confiança no Trump como o salvador do Ocidente, e um certo messianismo, uma certa vontade de levar ao mundo a fé e os valores.
Richelieu, no século 17, já dizia que o indivíduo tem salvação, tem uma alma, ele vai para o outro mundo e se salva. Mas o Estado não tem isso, ele tem que se salvar aqui e agora.
Até hoje me parece muito equivocada, toda a política externa.
Estava há pouco assistindo uma entrevista com o Ciro Gomes feita nos Estados Unidos…
Nos Estados Unidos está se discutindo mais o Brasil do que aqui. Todos eles estão lá.
(Risos) Ciro falou que esse governo está saqueando nosso país, citando o acordo de Alcântara e a venda da Embraer.
O acordo de Alcântara é mais ou menos um consenso entre nós que acompanhamos aquele pântano que foi a relação com a Ucrânia nesse processo. Este acordo passa a ser uma coisa interessante para o Brasil, para a exploração espacial, porque o lugar é privilegiado, a instalação já está mais ou menos colocada. Eu acho que é um acordo interessante, uma vez que ele determinou bem, que o Brasil está cedendo para que os Estados Unidos usem Alcântara apenas em determinadas circunstâncias.
Por isso eu acho que o acordo de Alcântara talvez tenha sido o único aspecto positivo dessa relação. Então nesse sentido nós divergimos.
Também no caso da Embraer houve quase um consenso de que era um negócio a ser feito, não havia grandes problemas no fechamento desse acordo.
Não são esses acordos que me preocupam. O que me preocupa são as posições mais ideológicas.
Por exemplo, um questão mais delicada, mais próxima, mais preocupante, que é da Venezuela. Nós temos tido uma posição de condenação do Maduro e uma tentativa para contribuir com a democracia, mas sempre definindo que nossos limites são os limites políticos e diplomáticos. Ao passo que os Estados Unidos afirmam que todas as cartas estão sobre a mesa. O que significa indiretamente também, uma intervenção militar.
Aqui no Brasil as posições têm sido um pouco diferentes,
porque a nós que somos vizinhos e vamos continuar tocando essa relação ao longo dos anos, não interessa resolver o conflito desta forma.
O problema é que a posição brasileira é diferente, a posição representada pelo general Mourão, que se estabeleceu no Grupo de Lima, é uma posição que exclui essa alternativa, então há uma divergência nítida aí.
Marca a diferença entre interesses brasileiros e interesses americanos. Ambos querem contribuir com democracia, mas o Brasil não aceita a carta de intervenção militar, pelo menos em tese.
Embora as últimas declarações do Bolsonaro tenham sido um pouco enigmáticas…
Você usou o termo messianismo. Como ele se manifesta nesse governo?
Por exemplo, nas declarações e artigos do ministro das relações exteriores, em que o Trump aparece como líder do Ocidente e o potencial salvador de um mundo em que segundo ele é preciso afirmar os valores cristãos, democratas etc
Eu acho que quando você se coloca em política externa querendo reformar o mundo, é difícil.
Você tem alguma opinião sobre o Olavo de Carvalho?
Olha, eu não tenho opinião. A única vez em que Olavo me mencionou, foi em um livro chamado O Imbecil Coletivo, há muitos anos. Sobre mim ele disse que eu militarmente era inferior a um sargento do exército de Uganda ou de Zâmbia, já não lembro mais. Esperei Uganda ou Zâmbia protestarem (risos), mas como não protestaram nunca mais me interessei.
Mas realmente, discutir um pensador que está fora do Brasil, cujos livros sinceramente não li, eu não tenho condições.
A influência dele se dá através de cursos, palestras, ideias que são adotadas pelos filhos do Bolsonaro, e também pelo próprio presidente.
Um filósofo que tem a visão ideológica de reformar a cultura brasileira através de um governo determinado (risos), necessariamente está muito mais longe do pragmatismo.
Digamos que ele representa no governo Bolsonaro aquele setor que a gente chama de revolucionário, que pensa em alterar completamente as condições. Entra em choque necessariamente com outro setor, que tem a proximidade do real, que necessariamente tem que ser conduzido de forma mais pragmática. Esse setor são os militares.
Você consegue visualizar até onde vai essa perspectiva ideológica?
Até o momento essa questão tem um enorme peso nesse governo. De certa forma a questão ideológica tinha um peso também nos governos de esquerda, apesar do pragmatismo em alguns momentos. A questão ideológica definia nossa política externa, por exemplo empurrando a balança de relações mais pro lado dos países bolivarianos – coisa que não acontece agora.
Mas eu acho que a questão ideológica hoje está mais concentrada em três setores.
Primeiro, relações exteriores. Segundo, educação. E terceiro, direitos humanos.
No ministério dos direitos humanos, temos a ministra disse, que a partir de agora os meninos vestem azul e as meninas vestem rosa.
Você imagine uma mulher que bate na mesa com alguns funcionários ao lado, dizendo o seguinte, ‘agora vamos mudar o país, com meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul’ (risos).
Qual o poder que uma mulher e seus funcionários têm para alterar e definir uma situação nesse campo?
Essas questões não se formam a partir de uma definição de governo. Essas coisas se definem na sociedade em várias dimensões nas quais o governo não está presente. Na cultura, nas relações cotidianas, nas relações com os outros países…
Mas o governo pode interferir bastante, inclusive com cortes na cultura justamente…
O governo pode se preparar para isso, mas não deixa de ser idealista, na medida em que está supondo que estas coisas se definem na sociedade a partir da orientação de alguns burocratas, quando na verdade elas são bem mais amplas.
O que está havendo é uma retropia. Que vem a ser o contrário de utopia. Zygmunt Bauman fala isso do mundo, uma tentativa de voltar atrás, uma mitificação do passado. Um passado idealizado, que de fato não existiu assim exatamente, e que é semelhante às utopias, só que em um caminho invertido. A utopia te aponta para o futuro fantasiado, e a retropia te remete para um passado fantasiado para o qual você deve voltar.
Robert Shiller, vencedor do Nobel de Economia, afirmou que o Brasil merecia mais, depois de assistir ao discurso de Bolsonaro no Fórum de Davos.
É verdade, o problema é esse, o Brasil precisa de mais. Eu não sei se ele merece mais, mas ele precisa de mais. Porque ele teve a oportunidade de escolher nas eleições, e o caminho que ele decidiu escolher foi esse, então ele está de uma certa maneira aprisionado neste caminho que escolheu, pelo menos até 2022.
Nós falamos do núcleo ideológico. Existe outro mais pragmático, que procura resolver as questões que foram as mais decisivas na campanha, no meu entender.
O Bolsonaro talvez não pensa assim, ele pensa que o mais decisivo na campanha foi supor que as crianças estavam usando mamadeira de piroca, mas na verdade não é isso, o mais decisivo é a reconstrução econômica, e nesse sentido foi encaminhada a proposta de uma reforma da previdência que não é perfeita, tem alguns defeitos que precisam ser corrigidos, mas é uma reforma da previdência que se dá em um momento em que o Brasil precisa fazê-la. Porque se não o fizer, muito provavelmente ela será feita contra a nossa vontade, como aconteceu na Grécia.
Outro ponto importante e que teve um peso enorme nas eleições, é a questão da segurança pública e combate à criminalidade.
Então eu vejo esses dois núcleos importantes, que dependem menos do comando dele. O Guedes que funcionou pra ele como espécie de Posto Ipiranga, ele já disse que não entende de economia e confia no Paulo Guedes. E o Sergio Moro que é o elemento mais popular do governo dele.
Como está se construindo o campo de oposição a esse governo?
Acho que tem uma desagregação muito grande ainda. Primeiro porque de um lado a própria esquerda está dividida. Há uma parte da esquerda tentando se articular como oposição ao próprio Bolsonaro, e a outra parte da esquerda significativa que é do PT, ainda muita baseada em uma palavra de ordem Lula Livre.
Enquanto uma tem a perspectiva de buscar encontrar um caminho de apresentar alternativas e críticas, a outra concentra a energia maior na libertação de seu líder.
O que possivelmente vai acontecer é a confluência da oposição em determinados níveis e questões. É possível que surja na sociedade movimentos de oposição, ideias de oposição, que não necessariamente se alinhem com a esquerda.
Já estão surgindo. A deputada Tabata Amaral talvez seja um exemplo.
Exatamente. Uma linha de oposição séria que realmente tenha algumas ideias sobre o Brasil e queira discutir e neutralizar as bobagens do governo através dessas ideias.
Esse tipo de oposição que não tem as características da oposição que o PT sabe fazer, e fazia no passado. Mais agressiva, mais disruptiva, do tipo “quanto pior, melhor”.
No estágio em que o Brasil está, qualquer pessoa que diga “quanto pior, melhor”, certamente ficará isolada porque nossa consciência é de que já estamos muito mal.
Há uma nova geração de políticos.
Acho que existe um processo de renovação com algumas pessoas interessantes. Existem também alguns sobreviventes interessantes. A minha tese sempre foi essa, de que era preciso haver encontro dos novos com os sobreviventes que tivessem alguma experiência. Porque a história não começa do zero. Você precisa de experiência e energia para poder seguir adiante.
Tenho procurado contato com parlamentares que conheço, e falado sobre a importância disso, de se formar um núcleo trabalhador, estudioso, que pudesse encaminhar uma oposição programática.
Esse grupo pode não ser suficiente para alterar a correlação de forças, mas tem potencial para alterar algumas situações, desde que saiba se aliar com a opinião pública.