Davi Depiné, Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco: A alma do negócio

Com 'plea bargain', teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com ‘plea bargain’, teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas

Entre os 14 capítulos do projeto de reforma da legislação penal e processual apresentados pelo Ministério da Justiça, um deles incorpora uma sensível alteração na forma como se desenvolve o processo criminal no Brasil, adotando um modelo oriundo do direito norte-americano, lá denominado de “plea bargain” – espécie de “acordo de confissão”.

A origem desse instituto, que modula a ação do órgão de acusação, condiz com o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, em que prevalece, embora não com a mesma frequência de outrora, o julgamento pelo tribunal do júri —e não por um juiz de direito— de boa parte das infrações penais.

Se o júri tem como nuance positiva seu caráter democrático, tem como pontos negativos sua complexidade e demora. Um julgamento pelo júri pode levar dias e até meses (o famoso caso O.J. Simpson durou 372 dias, apenas o julgamento). Diante desse cenário, pergunta-se: como a Justiça americana ainda assim funciona? A resposta está justamente no “plea bargain”. Os acordos correspondem a mais de 90% dos procedimentos criminais, impedindo que todos esses casos prossigam nos tribunais, gerando celeridade e assegurando o início do cumprimento de penas de forma mais ágil.

Perfeito, então. E por que não adotar essa sistemática em “terra brasilis”? E a resposta é: porque teremos uma máquina azeitada para obter confissões, verdadeiras ou falsas.

Atualmente, cerca de 65% das acusações criminais que aportam nos fóruns envolvem três tipos de delito: furto, roubo e tráfico de drogas. Em sua imensa maioria, as denúncias são lastreadas em prisões em flagrante. Um número diminuto de ações penais decorre de investigações policiais, reflexo da aprofundada e duradoura falta de investimento na polícia judiciária. Em casos de entorpecentes, especialmente, as testemunhas de um processo criminal costumam ser apenas os agentes policiais que efetuaram a prisão do suspeito.

E aqui começa a diferença. O depoimento exclusivo de policiais não é aceito como prova pela Justiça dos Estados Unidos. Não porque lá se duvide da credibilidade dos agentes de segurança pública, mas porque a comprovação de culpa deve ser feita através de provas não limitadas ao próprio aparato policial, evitando-se o risco de que o poder público apenas legitime a si próprio. O processo penal, enquanto instrumento de garantia e proteção contra eventual abuso estatal, deve assegurar a possibilidade de um contraditório. E como contradizer o Estado perante o próprio Estado? Daí porque, antes de um “plea bargain”, a acusação deve exibir as provas que possui, que serão usadas no processo penal caso o acordo não seja aceito. No Brasil, ao contrário, a confissão voltará a ser, como chamavam em tempos inquisitoriais, a rainha das provas —e obtê-la passará a ser a principal finalidade do processo.

Um dos agravantes para isso é o fato de que não há negociação real se há desigualdade entre as partes envolvidas ou se proliferam incentivos para que a acusação seja feita com excessos. Ainda hoje, não há Defensorias Públicas instaladas e equipadas suficientemente no país para garantir sempre a defesa técnica de pessoas carentes –aquelas que compõem a imensa maioria da população prisional.

Além disso, o procedimento americano assegura a imparcialidade judicial. O juiz que decide sobre eventual acordo não pode ser o mesmo que julga o caso, pois se entende que estaria influenciado por um convencimento prévio acerca do processo.

Por fim, resta perguntar: por que alguém confessaria algo que não praticou? Conhecendo os caminhos da prática penal brasileira e observando a realidade superlotada de nossos cárceres, não é difícil concluir que a presunção de inocência é coisa para poucos.

*Davi Depiné , Marcus Edson de Lima e Rodrigo Pacheco

Davi Depiné
Mestre em direito processual penal pela USP e defensor público-geral do Estado de São Paulo desde 2016

Marcus Edson de Lima
Presidente do Colégio Nacional de Defensores Gerais e defensor público-geral de Rondônia

Rodrigo Pacheco
Defensor público-geral do Rio de Janeiro

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