Projeto de lei que busca cooptação das forças policiais pelo presidente somada à irresponsabilidade da política de “armas para todos” coloca em sério risco a democracia no país
Está em curso uma articulação do Palácio do Planalto para a aprovação de um substitutivo do Projeto de Lei 4.363, que visa alterar a legislação sobre o funcionamento das polícias. Tal iniciativa além de constituir um tributo ao corporativismo e à irracionalidade econômica, conspira contra o pacto federativo e representa um real perigo contra a própria democracia.
Ainda hoje a organização das polícias militares é regida pelo Decreto-Lei de 1969, exarada no auge dos anos de chumbo, que visava em última instância o controle das polícias militares estaduais, colocando-as como forças auxiliares do exército e sujeitando-as ao monitoramento da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), um órgão do Estado-Maior do Exército. Tal base institucional sobreviveu ao processo democrático e —sobre os auspícios das Forças Armadas— permaneceu como um entulho autoritário em plena Constituição Cidadã, em seu artigo 144.
Portanto, a necessidade de um novo regimento das polícias que viesse a substituir a anacrônica legislação e propiciasse a modernização das nossas organizações num ambiente democrático era mais do que esperada. De fato, desde os anos de 1960 o Brasil mudou e houve, paralelamente, uma verdadeira revolução nos modelos institucionais das polícias pelo mundo afora. Mecanismos de gestão por resultados foram introduzidos e a velha ideia da polícia do depois, aquela que funciona reativamente para impor a repressão nas ruas calcadas na filosofia da guerra e do militarismo, foi declarada inoperante e não efetiva, segundo as inúmeras evidências científicas. Os novos modelos passaram a preceituar a parceria entre polícia e comunidade e o uso intensivo da inteligência como orientador das ações de curto e médio prazos para mitigar as causas dos pequenos e grandes crimes nos territórios. Nas nações desenvolvidas democráticas foram instituídos ainda mecanismos de controle das polícias pela sociedade civil, não apenas para identificar e responsabilizar os autores de desvios individuais de conduta, mas os desvios institucionais, em particular o excesso do uso da força, nas conhecidas Civilian Oversight —ou supervisão civil.
O supramencionado substitutivo vai na contramão da história. Esperava-se que uma legislação moderna contemplasse os aspectos singulares do trabalho de polícia e das novas formas organizacionais, que encampassem as ideias descritas no parágrafo anterior. No sentido contrário, inacreditavelmente, sugere-se extemporaneamente uma cópia travestida da organização das Forças Armadas, inclusive com a criação de novas patentes para as polícias militares, como a de tenente-general, major-general e brigadeiro-general. Conforme relata o ex-secretário nacional de segurança pública, o coronel José Vicente, “a evidência da ênfase militarista é clara: nas mais de 11.000 palavras do projeto, a palavra ‘policiamento’ aparece três vezes. A palavra ‘polícia’, que define a principal característica dessas instituições, é grafada 17 vezes, mas ‘militar’ aparece 274 vezes”. Expandindo o dicionário, os termos ‘transparência’, ‘responsabilização’ e ‘avaliação de resultados’ não foram encontrados.
O apreço ao corporativismo extremado fica também evidente na sugestão legislativa. Ao mesmo tempo em que responsabilização, efetividade, contrato de gestão, transparência e controle são figuras alienígenas na proposta, sugere-se que a escolha do comandante-geral da PM seja feita com base em uma lista tríplice dos candidatos mais votados, com mandatos fixos, o que acirraria o processo de politização interna das corporações e dos anseios corporativos. Pior, ao se sugerir que o comandante-geral tenha as mesmas prerrogativas que possui o secretário de Estado, o substitutivo acaba com qualquer possibilidade de gestão executiva pelo Governo do Estado da política de segurança pública e do tensionamento a favor da integração das organizações policiais, um grave problema no Brasil.
É ainda curioso notar que um governo que prega a austeridade fiscal seja patrocinador de tal proposta. Além das novas patentes a serem criadas que geram novos gastos, o documento ainda prevê que “a remuneração dos militares do Distrito Federal, dos Territórios, do ex-Distrito Federal e ex-Territórios será estabelecida em lei federal”, o que tenderia a colocar todas as forças no mesmo patamar de salários do Distrito Federal. Das duas uma, ou a proposta inviabilizaria financeiramente vários estados, ou uma conta salgada seria paga pelo governo federal e por toda a sociedade, sepultando o teto de gastos.
Se não fosse todos os graves problemas apontados acima, a articulação do Governo Federal pela aprovação do substitutivo atenta contra o pacto federativo e coloca em risco a própria democracia. Como já demonstrado na história, governos autoritários tendem a concentrar poder e, especificamente, a controlar as polícias. Já vimos esse filme no Brasil do Estado Novo (1937 a 1945) e do Regime Militar, quando as forças públicas civis foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares que passaram a ser “forças auxiliares controladas pelo Exército. No plano internacional, um exemplo, como bem lembrou Arthur Trindade, num artigo publicado no Fonte Segura, tal situação ocorreu “na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.” Mais recentemente na Bolívia, o papel da polícia também foi importante no golpe de Estado que tirou Evo Morales do poder.
Depois da invasão do Capitólio, no ápice da tentativa de golpe incentivada pelo Trump, Bolsonaro ameaçou que “Se Brasil não tiver voto impresso em 2022, vamos ter problema pior que os EUA”. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que adesão dos policiais praças ao bolsonarismo no país gira em torno de 41%. O processo de cooptação das forças armadas e policiais pelo presidente, que já vem de tempo, somada à irresponsabilidade da política de “armas para todos” e ainda a esse passo central para controlar as forças policiais estaduais coloca em sério risco a democracia no país. É urgente a mobilização de todas as forças democráticas contra mais essa excrescência e contra o enorme risco que nos ronda.
Daniel Cerqueira é doutor em economia, diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.