Para eles, estatal é sinônimo de público
Tudo indica que o atual governo deixará o Brasil em situação pior do que recebeu. A culpa não será da herança nem da epidemia, mas de seu obscurantismo, reacionarismo e falta de empatia. Bolsonaro olha o mundo por retrovisor embaçado, com raiva do passado e sem projeto para o futuro. Basta citar sua crença em mitos e narrativas sem comprovação científica; sua obsessão por ideias ultrapassadas, tanto as que adota quanto as que ele combate. Sua negação da realidade e da ciência, ao lado da falta de empatia, é o fator determinante para agravar a falta de coesão e rumo que enfrentamos há muitos anos.
Lamentavelmente, o negacionismo não é apenas dele e de seus seguidores. Muitas das lideranças na oposição também negam a realidade. Acreditam que estatal é sinônimo de público; que o Estado é sempre comprometido com justiça social, com eficiência e sem corrupção. Não enxergam que cada estatal tem também interesses próprios de políticos, servidores e dirigentes, às vezes opostos aos do público. Negam a realidade da corrupção, visível em malas com dinheiro, contas em santuários fiscais, propinas devolvidas. Veem a realidade como desejam que ela seja e divulgam as narrativas que lhes interessam.
Há momentos em que, para enfrentar catástrofes ou para executar projetos, governos responsáveis e solidários gastam mais do que arrecadam. Para isto, tomam empréstimos ou emitem moeda, mas sem negar que o déficit será cobrado depois por juros altos, aumento de impostos ou por desvalorização da moeda, com a desestruturação da economia e sacrifícios sobretudo para os pobres. Mas, enquanto bolsonaristas acreditam que a Terra é plana, oposicionistas acreditam que o Tesouro público é elástico, com dinheiro ilimitado. Outros confiam na lógica temerária de que os empréstimos ou emissões de moeda induzirão crescimento de produção que aumentará a arrecadação na dimensão necessária para cobrir déficits.
Negam também a realidade política ao optarem pelo acomodamento populista de aumentar gastos em uma prioridade sem sacrificar outras. Defendem que é possível fazer Copa e Olimpíada sem usar recursos que poderiam ir para educação e saúde; escondem que distribuir renda significa tirá-la de algum lado; negam que a gratuidade sempre é paga por alguém; e que aumentar gastos sociais exige reduzir subsídios e privilégios em outros setores; tratam privilégios como se fossem direitos; consideram que a vontade solidária não precisa respeitar a realidade.
Entre líderes e intelectuais progressistas, muitos negam os impactos das grandes transformações mundiais e seus impactos no Brasil: globalização, robótica, inteligência artificial, elevação na esperança de vida, redução na taxa de natalidade, limites ecológicos ao crescimento. Não percebem que, para construir progresso e justiça, a nova realidade do mundo exige reformar leis e regras da época em que a economia era nacional e a produção, manual. Tampouco enxergam que conhecimento e confiança são fatores determinantes da economia moderna. Por isso, não tomam a educação de qualidade para todos como o vetor do progresso e da justiça social; nem a estabilidade jurídica e monetária como os alicerces. Negam que o Brasil tem um sistema de apartação social no qual os trabalhadores sindicalizados do setor moderno não têm necessariamente interesse econômico, nem solidariedade política com os pobres excluídos. Não percebem que o equilíbrio ecológico vai exigir um novo modelo civilizatório que reduza padrões de consumo e substitua o PIB como indicador de progresso.
O terraplanismo não resiste à observação, mas as narrativas de nossos segregacionistas são convincentes e sedutoras, até que ocorram desastres. Por isso, o obscurantismo bolsonarista ameaça poucos anos e passa, o obscurantismo na oposição poderá ameaçar a coesão e o rumo por décadas.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília