Quem defendeu a Ciência na epidemia deve respeitar a aritmética fiscal
O coronavírus trouxe a percepção de que a economia deve ter compromisso com a solidariedade. Mesmo veículos como “The Economist” e “Financial Times” têm manifestado a necessidade de uma reorientação na relação da economia com a sociedade, para enfrentar a tragédia da pobreza e do meio ambiente. Percebe-se a indecência da concentração de renda, da persistência da pobreza, da barbaridade dos “mediterrâneos invisíveis” barrando os pobres para proteger aos ricos. Na crise econômica do coronavírus, até os mais arraigados defensores do liberalismo econômico a qualquer custo passaram a sustentar políticas e gastos públicos para atender a necessidades da saúde, assegurar renda, recuperar empregos e proteger empresas. Passaram a apoiar medidas keynesianas, mesmo ao custo da emissão de moedas e alargamento da dívida pública.
Descobriu-se que respirar e comer são igualmente importantes para a saúde e a vida, mas o oxigênio é mais urgente que a comida. Da mesma forma que na guerra em que a produção de armas e o salário dos soldados são mais urgentes do que a produção de automóveis e o salário dos operários. Por isso mesmo, passaram a chamar essas estratégias de economia de guerra. Este exemplo correto para os tempos da pandemia do coronavírus deveria servir para o momento posterior: uma economia de guerra para superar a persistência da pobreza. E enfrentar as outras epidemias que nos contaminam há séculos: 100 milhões de pessoas sem tratamento de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões sem saber ler, 70 milhões sem educação de base, 13 milhões de desempregados, milhares com dengue, malária e sarampo. A economia de guerra adotada para enfrentar as consequências do coronavírus deve dar lugar a outra economia de guerra para enfrentar o “politicus vírus” que contamina as prioridades dos nossos gastos públicos.
Essa economia precisa entender que a pobreza não se erradica por transferência de renda mínima. O que eliminaria a pobreza é fazer com que todos tenham acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida digna: educação de qualidade, água e esgoto, serviço de saúde eficiente, transporte urbano de qualidade e uma renda mínima. Uma solução é oferecer renda, condicionada a que a população pobre produza o que ela precisa para sair da pobreza: contratada para a construção de escolas, saneamento, sistemas de coleta de lixo, podendo consertar e pintar suas casas em terrenos com a propriedade assegurada por uma reforma da estrutura fundiária urbana, recebendo bolsas para garantir a permanência dos filhos na escola ou para os adultos serem alfabetizados. Isso é um keynesianismo produtivo e social.
Enquanto no keynesianismo tradicional dos países ricos o governo transfere renda para o beneficiado não produzir mercadoria, e o mercado oferece os bens privados para os pobres, que já contam com os serviços públicos básicos, no keynesianismo produtivo e social o governo promove incentivos sociais, transferência de renda condicionada à produção dos bens e serviços cuja oferta elimina a pobreza.
Passada a pandemia do coronavírus, o populismo vai defender a manutenção das atuais rendas criadas como emergência, sem aproveitar o poder mobilizador dessa transferência para que se produza o que os pobres precisam, em troca da renda. Mas, para que o pobre se beneficie plenamente, é preciso que o custo seja feito com responsabilidade. Quem defendeu a Ciência no enfrentamento da epidemia do coronavírus deve respeitar a aritmética fiscal, porque sem ela os pobres e os jovens pagarão depois o que receberem agora. Com a inflação e a dívida pública, como tem sido feito há décadas. Por isso, para ser eficiente e justo na guerra pela abolição da pobreza, o keynesianismo ético deve ser produtivo, social e responsável.