Dos grandes autores lembramos o que escreveram, dos maiores adotamos o pensamento, mesmo sem saber o nome. Nós pensamos com base nas ideias de Baruch de Spinoza, Erasmo de Rotterdam, Adam Smith, René Descartes, Jeremy Bentham, David Hume, Aristóteles, John Maynard Keynes, Hannah Arendt e outros que romperam posições do passado e inventaram novas formas de entender a realidade.
Ainda quem nunca ouviu falar neles, pensa e age em função das ideias que eles construíram. Alguns brasileiros nos explicaram “de onde vem”, “como é”, “para onde deve ir” o Brasil. Entre outros, é possível citar Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire. Cada um teve sua influência na formação da mente brasileira: como nós entendemos nosso país e o mundo ao redor.
Desses, Celso Furtado tem influência decisiva para explicar o “de onde viemos”, “por que somos subdesenvolvidos”, quais os “entraves ao nosso desenvolvimento”, “como nos desenvolvermos”; ele também nos alertou para os riscos do progresso.
Antes do livro Formação Econômica do Brasil, víamos a nossa história como uma sucessão de fatos, especialmente políticos. Graças a Celso Furtado passamos a entender como a história avançou: a lógica e as forças que nos empurraram. Graças também a ele, entendemos porque esbarramos, em vez de avançar. Seus livros Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico e Dialética do Desenvolvimento são básicos para entender como certas economias se desenvolvem e porque outras ficam estagnadas.
Mas ele não foi apenas analista, foi também formulador de caminhos. Devemos a ele os documentos básicos de estratégias para o desenvolvimento do Brasil, como o “Plano Trienal”, e para superar a tragédia da pobreza e da desigualdade regional. Foi formulador da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e homem de ação. A engenharia política para aprovar no Congresso as leis que serviram de base à criação da Sudene e dos instrumentos de incentivos fiscais foi uma obra de genialidade conceitual e de articulação política; tal como Nabuco nos dias de maio de 1888 para aprovar a Lei Áurea.
Passados alguns anos, foi Celso Furtado quem, no seu livro O Mito do Desenvolvimento, nos trouxe a percepção dos limites do desenvolvimento, tanto quanto Nabuco nos lembrou que a Abolição não se completaria sem reforma agrária e sem educação.
Por tudo isso, cem anos depois de seu nascimento, o pensamento e o exemplo de Celso Furtado estão vivos, nas lembranças e homenagens que os historiadores, economistas e políticos fazem à sua obra. Vivo também em milhões de brasileiros que, sem saber, usam conceitos e palavras que ele criou, sonham para o Nordeste e para o Brasil rumos que ele definiu, temem resultados negativos para os quais ele alertou.
Raros intelectuais e homenageados são lembrados tantos anos depois de sua obra, por quem o estudou e por quem pensa como ele ensinou, mesmo sem conhecer sua obra. A maior homenagem a ele não é, entretanto, lembrar a importância de sua obra, mas ter a consciência de como ele nos faz falta em um momento em que o Brasil vive em transe, não em transição, sem coesão, nem rumo.
Cometemos muitos equívocos nas duas décadas sem Celso. Uma das maiores foi burocratizarmos e amarrarmos o pensamento. Burocratizamos nas carreiras universitárias e amarramos em siglas partidárias. Deixamos de usar plenamente a liberdade criadora, paramos de ousar, nos apegamos às ideias do passado como se fossem camisas de força de uma lucidez superada pela realidade. Ficamos críticos ou bajuladores, não analistas e intérpretes inovadores.
A maior lição de Celso Furtado foi seu exemplo de pensar com rigor analítico e com liberdade imaginativa, sem amarras, sem líderes e sem siglas partidárias. Ninguém amarrou o pensamento de Celso Furtado, ninguém tolheu sua imaginação e todos reconhecem seu rigor. É nisso que precisamos seguir avançando no que ele formulou. Seu pensamento um dia evoluirá graças aos que seguirem seu exemplo, tanto quanto ele fez avançar o pensamento de seus mestres.
Olhando para sua própria obra e para os desafios de hoje, a maior homenagem ao Celso, nos seus cem anos, é agradecer pelos pilares intelectuais que ele nos deu nas ideias e no caráter, e pensar novas ideias e novos instrumentos para enfrentar os novos desafios. Agir como ele agiria: pensando além do que ele nos ensinou.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)