Ainda não inventamos um sistema melhor do que a democracia para servir aos interesses do povo de uma nação, mas ela confunde as necessidades do povo no futuro com a soma dos interesses dos eleitores no presente: metade mais um dos indivíduos de hoje representando o todo no amanhã. Embora a democracia ainda seja o melhor dos sistemas, há momentos em que a soma dos indivíduos não representa, necessariamente, o conjunto deles, como nação. A democracia é o neoliberalismo na política. Um exemplo é a fala do Ministro da Economia dizendo que os livros são bens de consumo dos ricos e, portanto, é justo e democrático taxar os livros: cobrar dos ricos para que eles leiam e paguem para que os pobres tenham água para beber. Ele tem razão na lógica democrática e na justiça imediata: temos pobres sem água em casa e temos ricos lendo enquanto bebem água fresca. Ele tem razão na medíocre visão do neoliberalismo político, do imediato e dos indivíduos.
Nesta lógica, leitura é para ricos, água para os pobres, hoje e sempre, por isto ele não analisa a justiça de ensinar o povo, desde criança, a ler e gostar de ler. Na visão da política democrática neoliberal do eleitor individual e o contribuinte atual, não há justificativa para o eleitor pobre pagar para que o rico se embriague no vício da leitura, nem o rico pagar para o pobre virar leitor. Porque para ele, não existe o conceito de povo leitor, nem isto é visto como indicador de riqueza e progresso. Por isto ele se sente um paladino da justiça e do progresso ao defender o que nos parece absurdo, impostos mais altos para livros.
Mas muitos leitores, escritores, editores, são contra este aumento de imposto, sem defender e lutar para que a leitura deixe de ser um privilégio. Na visão do povo-leitor, não apenas eleitores e ricos, deveria lutar por programas de rápida erradicação do analfabetismo. Por uma estratégia para transformar o Brasil em um país de leitores, todos lendo, graças a uma escola com a máxima qualidade e igual para todos. Para implantação de uma rede de bibliotecas, inclusive domésticas, financiadas com recursos públicos e com acervo de um bilhão de livros.
Desde quando, para calar a boca do ministro, lutam para que a leitura não seja um consumo, alguns consideram um vício, de rico, como tomar uísque? No máximo defende-se pequenas políticas positivas em prática há décadas para minúsculos, sem o salto para termos uma escola de qualidade entre as melhores do mundo e a qualidade igual para todos: independente da renda e do endereço. Com resultados concretos na formação de uma sociedade leitora, ávida por livros. Deixa assim ao ministro a chance de dizer, com lógica, o absurdo que ele disse: “ler é um privilégio de quem lê”.
Com a lógica da democracia neoliberal do eleitor, sem considerar o povo e sem ver o país adiante. O neoliberalismo econômico vê o livro como bem de consumo, não a leitura como vetor de riqueza estética, de ampliação da eficiência econômica e do horizonte de liberdade. Lógica também dos que se opõem à medida do ministro, mas querem livros baratos para os mesmos que já leem, sem propor a construção de um povo de leitura.
A imbecilidade do ministro tem lógica e não é só ele que pratica esta lógica: a democracia vista como o governo a serviço de cada indivíduo, não a serviço da nação, e sem uma liga com o futuro. Não temos uma liga moral com os não leitores e nem com a lógica econômica, não percebermos que o custo do livro não é só imposto, é também o resultado das tiragens baixas em um idioma de raros leitores.
A imbecilidade do ministro está na moral, ele não vê a importância da leitura nem tem sentimento de povo e de transcendência histórica que vai além do imediato. Mas também lhe falta inteligência contábil para saber que são tão poucos os leitores, que aumentar imposto sobre livro empobrece o país e não ajuda a equilibrar as contas públicas. Estamos divididos entre pobres que não leem e leitores que não veem. Não percebem que os pobres não leem por falta de dinheiro, mas sobretudo por falta de alfabetização e educação de base que promova o gosto e a capacidade de ler. Se todos lessem, os livros ficariam baratos e as bibliotecas seriam como bolsões de oxigênio cultural.
Temos que enfrentar o neoliberalismo anti-leitores de Guedes, mas distinto do neoliberalismo social de manter os benefícios apenas para os poucos leitores que temos. Precisamos barrar livros, este imposto contra a riqueza cultural, lembrando que Guedes é um detalhe grotesco de uma política anti-leitura de séculos no Brasil. Devemos aceitar impostos sobre os leitores ricos, mas não sobre a leitura, penalizar os bens de luxo que eles compram, mas não tratar livros como luxo… salvo talvez alguns que o ministro leu. São estes impostos sobre os bens de luxo, que não são livros, serem usados para baratear os livros, até também com menos impostos sobre eles, mas sobretudo com melhores escolas para todos, inclusive os filhos de ricos que também estão deixando de ler.
Mas o Guedes não é o primeiro a querer propor esta troca: por décadas, decidiu-se enfrentar a desigualdade regional levando água, não leitura, para o Nordeste. Certo que água é mais urgente para a sobrevivência, mas não transforma a sociedade. Porque a água, como impostos sobre livros, pode dar votos, mas não enriquece o povo, não ensina a votar, nem faz perene o fluxo de água e demais bens e serviços que o povo precisa, inclusive sua liberdade.
*Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor Emérito da Universidade de Brasilia (UnB)