Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação
Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.
A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).
“Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.
A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.
A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.
Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:
1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de “entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.
2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção – ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;
3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;
4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;
5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.
Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.
Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.