Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda
O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.
A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas – mais amplas e efetivas que as já previstas em lei – precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.
Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão – usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses – impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.
É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.
Combater o racismo deveria tornar-se a rotina de todos os cidadãos brasileiros, mesmo que uns não queiram fazer isso. Muitos formadores de opinião, integrantes das elites do Brasil (empresarial, financeira, política, cultural, sindical, da máquina administrativa e estatal), não percebem que o que está em jogo é a sobrevivência da democracia e, portanto (atenção, “farialimers”), da economia de mercado.
Democracia prescinde de igualdade de oportunidades, assim como economias de mercado, de concorrência entre as empresas. Neste imenso país, a população negra e pobre não chega nem ao ponto de avistar oportunidades – sua ambição, antes de mais nada, é viver, existir, sair cedo de casa e voltar vivo. Não há regime democrático, República, portanto, economia saudável, que sobreviva a essa tragédia ad infinitum. Basta ver o desafio pelo qual nossa jovem democracia passa neste momento.
Para quem considera uma mistificação, seguem alguns dados aterradores sobre o extermínio cotidiano a que estão submetidos os negros no Brasil, principalmente, os jovens entre 15 e 24 anos (os dados são do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
- Em 2018 (último dado disponível), 57.956 brasileiros foram assassinados;
- do total das vítimas, 75,7% eram negras;
- o risco de a vítima ser um negro, na pesquisa de 2018, foi 74% maior para homens negros e 64,4% maior para as negras;
- do total de mortos, 30.873 (53,3% do total) eram jovens (atenção, economistas que se debruçam sobre os baixos índices de produtividade da economia brasileira!); o país assiste, passivamente, ao “assassinato” de seu futuro;
- em 2018, homicídio respondeu por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,2% na faixa entre 20 e 24 anos; e 43,7% das mortes os jovens entre 25 e 29 anos.
O Estado brasileiro, evidentemente, precisa ser reformado para cumprir a Constituição, que, admitamos, encerra um projeto de nação. Todos sabemos que, mesmo tornando o enfrentamento do racismo a prioridade do país por décadas, levaremos gerações até chegar a um lugar menos injusto.
O desafio é enorme, mas tudo indica que a pandemia, ao escancarar o racismo, as desigualdades sociais, a inaceitável concentração de renda, acordou parte da sociedade. Não as elites, com raras exceções. O que se vê por parte de muitas empresas, ainda que se reconheça o aumento da filantropia nesta terrível crise sanitária, são ações marcadas por estratégias de marketing, destinadas, portanto, a valorizar as marcas das empresas num momento de perda e dor para milhares de famílias. Isto, sem mencionar o sofrimento decorrente do empobrecimento brutal provocado pela recessão na qual a pandemia jogou o PIB.
Filantropia deveria ser uma virtude realizada em silêncio, do contrário, soa a oportunismo. Ademais, as doações não deveriam ser abatidas do Imposto de Renda das companhias. Mas, filantropia no momento em que vivemos é muito pouco perto da crise social vivida pela maioria dos brasileiros.
Quem está acordando para a dura realidade é a periferia das grandes cidades, habitantes de Estados de exceção, governados por milicianos e o crime organizado. Em oportuno artigo intitulado “É preciso derrubar o apartheid brasileiro”, Paulo Sérgio Pinheiro indaga: “Por que se sucedem esses horrores em supermercados e shoppings? Porque a instituição da democracia, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiu debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra, agora maioria de 56% no Brasil”, disse ele. “Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e torturados nas prisões; ausentes de todos os lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público; recebendo salários inferiores aos brancos; sendo alvos de racismo no quotidiano.”