Depois de 33 anos, estabilidade econômica e política é questionada
A mais desafiadora transição política enfrentada pelo Brasil, desde a redemocratização, mostra que o país precisa amadurecer suas instituições. A democracia deve ser encarada como um bem absoluto, inalienável, mas sua construção, especialmente em nações que experimentaram interrupções históricas (no caso brasileiro, em 1937, com o Estado Novo, e, em 1964, com o golpe militar), é cotidiana. Em geral, quanto mais antiga uma democracia, mais forte ela é e mais arraigados são os valores democráticos.
Democracias frágeis têm instituições frágeis. É por isso que algumas transições são marcadas por turbulências. Quando os militares perceberam, em meados da década de 1970, que ficou difícil esticar a ditadura depois dos anos de chumbo – cujo marco inicial foi a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), no fim de 1968 -, a ideia de distensão e abertura tomou lugar. Mas quem detém poder, principalmente num regime autoritário, resiste a entregá-lo.
Entre 1975 e 1985, período em que se deu a transição “lenta, gradual e segura” arquitetada pela cúpula militar, grupos resistentes ao retorno da democracia tentaram promover golpes dentro do golpe e, por muito pouco, a redemocratização não foi abortada. No fim, uma “surpresa” desagradável para os brasileiros que não votavam para presidente desde 1961: coube ao Congresso eleger o primeiro presidente depois de três décadas.
Este é o Brasil: no papel, o regime de exceção vigorou de abril de 1964 a março de 1985, sendo que a transição para a democracia consumiu quase metade desse tempo. Muito comum na história do país, o acordo de transição conciliou interesses do grupo que perdeu a hegemonia e do grupo de oposição que assumiu em seu lugar. No acerto, o presidente seria Tancredo Neves, um dos expoentes da oposição “consentida”, e o vice, José Sarney, um dos próceres do regime autoritário – a derrota no Congresso, em 1984, da emenda constitucional que restabelecia a eleição direta foi parte do acordo.
O destino, traiçoeiro que só ele, decidiu, porém, que em 15 de março de 1985, depois de mais de duas décadas de ditadura, Sarney subiria a rampa do Palácio do Planalto, e não Tancredo – que adoeceu dias antes da posse e morreu em 21 de abril. No Brasil, a vida imita a arte, e não o contrário. Nesse contexto, o primeiro governo civil da redemocratização foi marcado por disputa intestina entre viúvas da ditadura e a nova situação, liderada por integrantes da “resistência democrática”.
Não se pode dizer que deu tudo errado. Afinal, a democracia avançou, direitos foram restaurados, elaborou-se uma nova Constituição, proibiu-se a censura, o país começou a sair da toca e a se aproximar dos vizinhos etc. Mas, marcado por intensas disputas de poder, o governo Sarney fracassou de forma retumbante na tentativa de estabilizar a economia. A situação era caótica: inflação de três dígitos, calote na dívida externa, ausência de crédito externo, paralisação dos investimentos etc.
Num ambiente conturbado, os brasileiros foram às urnas em 1989 e elegeram Fernando Collor, que conseguiu criar imagem de “outsider”, político anticorrupção (para se contrapor aos muitos escândalos do governo Sarney) e anticomunista (para agradar a direita e a amplos setores da classe média e, assim, derrotar Lula no segundo turno). Ulysses Guimarães, líder da resistência democrática, obteve votação inexpressiva.
A eleição de 1989 mostrou que, naquele momento, já havia fadiga dos brasileiros com políticos tradicionais. Originário de uma oligarquia nordestina, Collor era tão ou mais tradicional que os outros, porém, com um marketing vigoroso, apresentou-se de outra maneira. Mas o que contribuiu decisivamente para sua propaganda dar certo foi o ambiente confuso, de crise econômica e desesperança, que o país enfrentava.
Aquele pleito teve ainda duas outras novidades: Lula começou a disputar eleições e o getulismo, na ocasião representado por Leonel Brizola, viveu seu ocaso. A partir dali, Lula e seu PT assumiram a hegemonia das esquerdas – desde então, estiveram em todas as eleições presidenciais e só perderam duas (1994 e 1998).
Collor sofreu impeachment em 1992 e seu vice, Itamar Franco, assumiu o cargo em meio a uma renitente crise econômica. Antes de tomar posse, exigiu dos partidos que derrubaram o antecessor que o apoiassem numa coalizão, do contrário, não colocaria a faixa presidencial. O PT foi o único que ficou de fora do governo porque, acreditando na tese do “quanto pior, melhor”, apostou que Lula daria um baile na eleição de 1994. Já Fernando Henrique Cardoso, alçado a ministro da Fazenda em 1993, sabia que um plano econômico bem-sucedido o levaria ao poder.
Lula estava certo num aspecto. Se a eleição de 1994 tivesse ocorrido em ambiente parecido com o de 1989, provavelmente ele teria sido eleito. Durante o pleito, perguntou a seu candidato a vice, Aloizio Mercadante, se o Plano Real tinha chance de dar certo. Ouviu um “não” como resposta. Ocorre que o plano interrompeu um longo período (mais de 20 anos) de inflação alta no Brasil. Tanto em 1994 quanto em 1998, Lula perdeu a disputa para FHC no primeiro turno.
No segundo mandato de FHC (1999-2002), plantaram-se as sementes para a alternância de poder: a forte desvalorização do real nos primeiros meses deu a impressão aos cidadãos de que o real chegara ao fim e o apagão de energia em 2001 derrubou uma economia que crescera bem em 2000 (mais de 4%) e começava a acelerar o passo. Diante da liderança de Lula nas pesquisas, o mercado reagiu mal, o real voltou a desvalorizar-se e a inflação assanhou-se, chegando a mais de 12% naquele ano.
Esperou-se o pior de Lula e isso não veio. Ele chegou ao poder, derrubou a inflação, promoveu algumas reformas, reequilibrou as finanças públicas, pagou dívidas e respeitou contratos. Tornou-se o fiador da estabilidade e, em 2006, mesmo com a imagem arranhada por causa do escândalo do mensalão, foi reeleito depois de derrotar Geraldo Alckmin no segundo turno. Um registro: a inflação daquele ano (3,1%) foi a segunda menor da história e a economia já crescia, na margem, 4%.
Em 2010, o sucesso de seus dois mandatos permitiu a Lula eleger Dilma Rousseff com relativa tranquilidade. Havia desconfianças no mercado quanto ao compromisso da candidata com o legado do antecessor na economia, mas Lula tinha crédito. Naquele momento, nem o mais pessimista dos integrantes do mercado imaginou que, oito anos depois, chegaríamos a uma eleição presidencial duvidando da estabilidade econômica e política tão arduamente conquistada pelos brasileiros ao longo de 33 anos de redemocratização.