Constituição de 1988 fomentou corporativismo
Na saída do regime militar, em 1988, a sociedade brasileira repactuou seu “contrato social” por meio da nova Constituição. Chamada de “cidadã”, esta criou as bases para a fundação de uma nação. O projeto de nação, inscrito na Carta Magna, se caracteriza pela garantia inédita, a cidadãos brasileiros e estrangeiros que residam aqui, de direitos e garantias fundamentas perante o Estado.
Cláusulas pétreas da lei fundamental do Brasil, esses dispositivos constitucionais determinam, entre outras coisas, que, neste pedaço do planeta, não se pode discriminar um cidadão sob qualquer justificativa (etnia, origem, gênero, opção sexual, idade etc); o regime político é a democracia e o sistema econômico, o capitalismo; a censura é terminantemente proibida; a liberdade de expressão está assegurada; o Estado deve oferecer serviço de saúde gratuito a todos e educação obrigatória até o ensino básico.
Para os que maldizem a Constituição com assiduidade e desprendimento, uma palavrinha de um dos nossos maiores constitucionalistas, o professor Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito da FGV-São Paulo. “Estou de pleno acordo que, apesar de todas as suas idiossincrasias, a Constituição de 1988 representa nosso maior esforço civilizatório. Também creio que graças à sua resiliência nossa democracia ainda não sucumbiu”, disse ele em mesagem enviada a esta coluna.
A característica comum a qualquer nação é a igualdade de oportunidades, assegurada pelo Estado por meio de políticas que ajudem a formar cidadãos capazes de se inserir numa economia de mercado. Isto demanda a existência de um serviço público que nunca tivemos na Ilha de Vera Cruz. Aqui, o Estado é dominado por grupos de interesse específico, enquanto sua missão constitucional é zelar por interesses difusos.
O serviço público em países da União Europeia e nos Estados Unidos atende muito mais aos interesses difusos do que no Brasil. Nesse aspecto, a Constituição de 1988 abusou na quantidade de equívocos transformados em leis.
Entre outras barbaridades, os constituintes consagraram a estabilidade dos funcionários públicos no emprego, inclusive, dos que haviam ingressado até então sem concurso, e asseguraram o direito dos funcionários ao recebimento de aposentadoria integral. Além disso, estabeleceu a paridade, isto é, a aplicação às aposentadorias do mesmo percentual de reajuste dos salários do pessoal da ativa.
A regulamentação da Constituição nos anos seguintes a 1988 piorou as coisas ao instituir, por exemplo, o Regime Jurídico Único, a isonomia salarial entre as carreiras, como se a natureza do trabalho de um agente da Polícia Federal seja comparável à de um funcionário do Banco Central ou de um auditor fiscal da Receita.
Os incentivos criados definitivamente não melhoraram a qualidade dos serviços prestados pelo Estado brasileiro, mas serviram para afastar o funcionalismo da essência de sua missão, que é ser o anteparo do cidadão perante os inquilinos do poder, um princípio inscrito na Constituição, mas que jamais foi respeitado.
O que se fomentou, com o modelo de serviço público vigente, foi o fortalecimento de corporações voltadas, em geral, para a defesa permanente de seus interesses específicos, como a equiparação salarial com outras carreiras, a concessão de reajustes salariais automáticos com base em anuênios e quinquênios, o recebimento de auxílio-moradia (uma forma disfarçada, logo, ilegal, de complementação salarial), direito a licenças-prêmio (período sabático sem exigência de contrapartida de formação acadêmica ou profissional) etc.
Ora, essa miríade de direitos e vantagens a ser defendida permanentemente desvia qualquer profissional de sua missão primordial. Esse tipo de distorção é visto também no setor privado, especialmente, nos momentos em que há bolhas financeiras – executivos, incentivados pelos generosos bônus atrelados a desempenho das ações das empresas, preocupam-se mais com a alta do papel no curto prazo do que com a sustentação dos resultados adiante; lembremo-nos do estrago que a turma que operava com crédito “subprime” em bancos americanos e europeus provocou na economia mundial na primeira década deste século.
O problema do “subprime” era dos acionistas dos bancos que quebraram e, em última instância, das sociedades americana e europeia. O corporativismo das carreiras do Estado na Ilha de Vera Cruz nos afeta a todos – cidadãos, consumidores, empresas.
Nas sempre ruidosas campanhas salariais e também nos protestos em defesa de direitos que ocupantes do Palácio do Planalto de vez em quando ameaçam extinguir, as corporações alegam que querem proteger, na verdade, o Estado, contra a sanha de empresários interessados em obter benesses – estes existem, mas não estão do outro lado do balcão; são, na verdade, companheiros das corporações na categoria de “donos do poder”.
Não é verdade. A luta das corporações é e sempre será em defesa da própria corporação, nem que essa luta incorra em prejuízo da maioria silenciosa.
Não se trata aqui de demonizar os funcionários públicos porque, na verdade, eles atuam no escopo definido. Os critérios de excelência exigidos pelos concursos públicos criaram uma elite de servidores públicos de alta qualidade, como, talvez, o país jamais tenha visto. Mansueto Almeida, Marcos Mendes, Pedro Jucá Maciel, Waldery Rodrigues Júnior, Nelson Barbosa, Ivan Monteiro, Paulo Caffarelli, Alexandre Abreu, Marcelo Abi-Ramia Caetano, Manuel Pires, entre muitos outros, são quadros de excelência comprada, formados pelo Estado brasileiro.
Mas, só isso não resolve o problema. O corporativismo, atrelado ao fato de que Brasília, uma cidade naturalmente dominada por autarquias, distanciou o funcionalismo do restante do país, tornou o serviço público muito caro. O titular desta coluna não está entre os que comparam salários do setor público aos do setor privado.
A comparação é indevida por várias razões. Não se pode comparar o ofício de um funcionário do Banco Central (órgão regulador do sistema financeiro) com o de um banco privado (regulado), nem de um advogado da União ou de um promotor com o de um advogado comum. O que dizer, então, da comparação entre o que ganha um juiz e o advogado que defende o réu em sua côrte. O problema vai além disso.