Aqui, liberalismo e liberal são palavras demonizadas
Uma das palavras mais demonizadas do nosso vocabulário é “liberalismo”. Sim, o vocábulo, porque, no fundo, não importa discutir seu significado real, a ideia, a doutrina ou o modelo de funcionamento de uma economia. Na Ilha de Vera Cruz, mesmo nas universidades, lócus por definição do debate de ideias, não se vai muito longe na discussão do tema. Ora, por quê? Porque o liberalismo econômico, nos ensinam os livros didáticos desde a tenra infância, é coisa de capitalista selvagem, empresário malvado e banqueiro usurpador, assim como de duas categorias cuja existência, para os anti-liberais, dispensa adjetivos: os investidores da bolsa de valores e os investidores estrangeiros.
A história nos conta por que somos assim, desde as capitanias hereditárias, a forma encontrada pelo já decadente reino de Portugal de ocupar esta imensa “ilha”, antes que alguém o fizesse.
“Descoberta” em 1500, Cabrália só começou a ser realmente colonizada 34 anos depois, quando D. João III dividiu o território à régua _ sem levar em consideração os acidentes geográficos que costumam demarcar cidades, Estados e até países _ em 15 capitanias. Como o reino estava falido, cada área foi concedida a um donatário que tivesse recursos para ocupar e administrar a sua área, que não lhe pertencia, mas a Portugal.
A ocupação era urgente porque franceses vieram aos baldes, nas três primeiras décadas de existência da América Portuguesa, depenar a vasta Mata Atlântica para extração de pau-brasil, madeira resistente usada na fabricação de móveis, instrumentos musicais e, ainda, no tingimento (vermelho) de tecidos. Antes das capitanias, funcionaram as feitorias, um monopólio concedido pelo reino português aos exploradores e comercializadores de pau-brasil. Mais adiante, em 1550, os franceses tentaram tomar a pulso parte da Ilha de Vera Cruz do domínio português…
Os donatários das capitanias começaram a desenvolver a lavoura de cana de açúcar e a produção de açúcar, principal produto da colônia dali em diante e por mais de dois séculos. Ali, criou-se a ignomínia que nos caracteriza como sociedade: a escravização de indígena e de africanos. No tempo das feitorias, os índios faziam o trabalho pesado de derrubar as árvores de pau-brasil, mas, em troca, recebiam bugigangas europeias dos feitores. Era um tipo de escravidão, mas esta só foi posta em prática oficialmente com o início do plantio de cana-de-açúcar. À medida que o cultivo da cana foi avançando, o tráfico de africanos escravizados na colônia de Portugal nas Américas cresceu exponencialmente. Como se sabe, apenas em 1888, quase quatro séculos depois, a escravidão foi abolida no Brasil, o último país do Novo Mundo a fazer isso. Tarde demais.
Este país habitado hoje por 210 milhões jamais conseguiu superar as capitanias hereditárias (cartórios), as feitorias (monopólios), a escravidão (a forma mais perversa de não se reconhecer no outro, obstáculo intransponível para o florescimento de uma nação). Grosso modo, esses elementos sempre estiveram presentes na forma como nossa economia funciona. A história nos ensina que grupos específicos, minoritários quando comparados ao conjunto da população, dividem entre si os sempre parcos recursos do Estado.
A tradução moderna e contemporânea do modelo de formação econômica e política está, por exemplo, no poder autóctone da burocracia estatal _ que, isolada em Brasília, goza de privilégios, como o direito absoluto à estabilidade no emprego, e toma decisões em seu próprio benefício ao arrepio da sensatez e da opinião de quem lhe paga os salários. Revela-se, também, na manutenção sob o guarda-chuva do Estado de um sem-número de empresas estatais, periodicamente flagradas malversando recursos públicos em prol de interesses de empresas privadas.
Nossa herança maldita se manifesta na inaceitável tolerância do Estado com a existência de monopólios e de setores com elevado grau de concentração. Este não só provoca ineficiências na economia como um todo, mas representa também uma ameaça à própria democracia. Nos regimes democráticos, têm enorme vantagem sobre os outros os detentores de poder econômico e informação. Esses ativos são comumente usados nas disputas de poder e não raramente de maneira desonesta. A razão disso é simples: a posse dessas vantagens gera assimetrias que podem desequilibrar a luta política e, assim, fragilizar a democracia.
O atraso secular se traduz, ainda, na concessão, pelos governantes, de uma miríade de incentivos fiscais (que reduzem a capacidade da União, dos Estados e municípios de investir onde são mais necessários, ou seja, em educação e saúde) a grandes companhias, que têm acesso a crédito bancário e ao mercado de capitais. Ao mesmo tempo, é negada aos pequenos empreendedores e empresas qualquer forma de ajuda. Ao contrário das grandes companhias, as pequenas têm que buscar crédito no mercado, onde os juros são muito mais altos.
Por, não se deve esquecer que a nossa (de)formação histórica aparece, com nitidez desconcertante, na convivência cínica das elites (todas) com vergonhosos indicadores de violência (60 mil homicídios por ano), pobreza (50 milhões de miseráveis), desigualdade (1% da população detém 28,3% da renda, enquanto os 50% mais pobres ficam com 13,9%) e de qualidade da educação (no país onde se destacam tantos especialistas nessa área, entra ano, sai ano, e nossos adolescentes ocupam sempre as últimas colocações do Pisa, programa da OCDE que mede e compara o desempenho de estudantes de dezenas de nações em provas de matemática, ciências e língua pátria.
Nada disso tem qualquer relação com o liberalismo econômico. É justamente o oposto. Na verdade, neste imenso pedaço de terra, ideias liberalizantes jamais frutificaram. Não há liberais de verdade por aqui. No fundo, o liberalismo – concebido por Milton Friedman – é uma utopia. A saga continua…