Cristiane Barbieri: No país da força-tarefa

No fim da semana passada, Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça, anunciou a intenção de montar uma espécie de Plano Real da Segurança Pública. Foi a primeira vez que se formalizou, em palavras, o espírito de uma época que elegeu Jair Bolsonaro (PSL). Do mesmo modo que o presidente Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, no Ministério da Fazenda, conseguiram estabilizar a inflação, o discurso de Bolsonaro e de Moro é o de um time que quer ser visto como responsável por colocar a criminalidade no passado.
Foto: Lula Marques
Foto: Lula Marques

No fim da semana passada, Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça, anunciou a intenção de montar uma espécie de Plano Real da Segurança Pública. Foi a primeira vez que se formalizou, em palavras, o espírito de uma época que elegeu Jair Bolsonaro (PSL). Do mesmo modo que o presidente Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, no Ministério da Fazenda, conseguiram estabilizar a inflação, o discurso de Bolsonaro e de Moro é o de um time que quer ser visto como responsável por colocar a criminalidade no passado.

Desde as revelações da Operação Lava-Jato, segurança e corrupção se tornaram o inimigo a ser combatido, segundo pesquisas de opinião pública. Até pelo perfil de Bolsonaro, essa deve se tornar a principal política de Estado dos próximos anos, dizem especialistas.

No xadrez do poder, o vento foi sentido há tempos e já tem mexido peças. Tanto que a plenária de encerramento das atividades do grupo que deu origem às investigações da Lava-Jato, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Enccla), um número inédito de autoridades de primeiro escalão esteve presente.

“Queria estar aí”, disse o próprio Moro, o filho mais ilustre da Enccla, num vídeo exibido na abertura do evento, que ocorreu em Foz do Iguaçu, entre os dias 19 e 22. O futuro ministro não compareceu, tanto pela agenda de transição quanto para não atropelar o atual ministro da Justiça, Torquato Jardim, que também esteve lá. Mas mandou seu recado: “Nós certamente vamos conversar no futuro. Tenho a pretensão de fortalecer a Enccla.

Vamos iniciar a gestão do ministério com uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado e quero contar com a contribuição contínua e perene da Enccla, que é uma iniciativa bem-sucedida e continuará a ser uma política não de governo, mas de Estado”.

O discurso das outras autoridades usou o mesmo diapasão. “É bom estar de volta!”, disse Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua fala no encerramento da plenária, ao lembrar da primeira reunião da Enccla, que ocorreu numa pousada em Pirenópolis (GO), onde ele esteve presente. Fez questão de cumprimentar ao microfone rostos conhecidos entre os 156 participantes.
Estavam lá vários membros da futura equipe de Moro. Em 2009, quando era o advogado-geral da União, Toffoli criou o grupo permanente do órgão na Enccla.

Pouco antes, Raquel Dodge, procuradora-geral da República, enfatizou iniciativas que estava tomando pessoalmente para ajudar o tema a avançar. Outras autoridades se manifestaram no mesmo sentido. “Faltava o apoio político e o envolvimento de fato do Poder Executivo nas ações da Enccla”, afirmou Fausto De Sanctis, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), enquanto esperava o início do evento. “Tanto do Executivo quanto do Legislativo, no sentido de dar uma mensagem à população de que os poderes estão irmanados para o combate e a prevenção da corrupção, que atingiu níveis absurdos no Brasil. Era um ponto de indagação.”

Agora, a resposta foi dada, com mais força e poder. A Enccla está para a segurança como a Universidade de Chicago, templo liberal, está para Paulo Guedes, futuro ministro da Economia. “Moro é um de nós”, disse um servidor federal durante o encontro. Ao que outro completou: “Ele tem conhecimento de causa: não é só um palpiteiro”. Tanto é assim que o futuro ministro confiou a Érika Marena o comando do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério da Justiça, que coordena a Enccla. Érika não só coordenou o início da Lava-Jato, como batizou a operação.

Com o sucesso de muitas de suas ações, e a entrada da pauta no coração do próximo governo, a demanda pela participação na Enccla explodiu. “Chegou num ponto em que a gente percebeu que não tem como acomodar 27 entes federativos, mais a União”, disse Sílvia Amélia Fonseca de Oliveira, coordenadora-geral de articulação institucional do DRCI. “Como, numa estratégia nacional, precisamos da participação dos órgãos estaduais, abrimos espaço para movimentos regionais que de certa maneira espelham a Enccla regionalmente.”

Não se tem notícia de iniciativa que funcione em modelo semelhante à Enccla em outro país. Ao longo dos últimos 16 anos, servidores altamente qualificados e representantes da iniciativa privada de áreas correlatas têm se reunido ano após ano, a cada dois ou três meses. A partir da identificação de problemas específicos, vão atrás de soluções para fechar o cerco num perene enxugamento de gelo contra a lavagem de dinheiro e a corrupção.
Foram centenas de iniciativas. Antes da Enccla, por exemplo, caso fosse necessário rastrear uma movimentação financeira suspeita, a Justiça enviava ofícios a cada banco e esperava meses por dezenas de respostas, que apenas identificavam a existência ou não da conta. Numa das ações da Enccla, capitaneada pelo Banco Central (BC), foi criado o Cadastro de Correntistas Unificados (CCS), que mostra instantaneamente o relacionamento de cada cidadão com o sistema financeiro, nos últimos cinco anos, por meio do seu CPF.

Nas reuniões seguintes, foi dada atenção à falta de padronização dos relatórios recebidos dos bancos, bem como de sistemas de tecnologia que conversassem entre si. Criou-se então o Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias (Simba), pelo qual passou a ocorrer o tráfego on-line de dados bancários entre instituições financeiras e órgãos públicos, após autorização judicial.

Proposta na primeira edição da Enccla, a própria Lei de Lavagem de Dinheiro, aprovada apenas em 2012, tornou mais rigorosa as punições contra esse tipo de crime. Até então, a lavagem só era tipificada se ocorresse a partir de determinados delitos, como tráfico de drogas, de armas ou sequestro. A partir de sua publicação, tornou-se possível classificar como lavagem o dinheiro proveniente de qualquer atividade ilícita. Penas maiores também foram impostas. Agora, a Enccla já trabalha em sua revisão.

Iniciativa do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), a estratégia nasceu em 2003 com dois objetivos: integrar diferentes órgãos públicos federais no combate à lavagem de dinheiro e atender a acordos internacionais sobre o tema dos quais o Brasil é signatário e que ganharam importância e pressão depois do 11 de Setembro. Era preciso tentar eliminar o oxigênio do crime organizado, nas mais diferentes esferas.
“A primeira reunião foi muito tensa”, disse Ricardo Liáo, secretário-executivo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e decano de todas as Encclas. “Havia um núcleo duro de entidades federais e era um apontando o dedo para o outro: ‘Eu não faço porque você não entrega sua parte’.”

Marcio Thomaz Bastos fazia palestras à época mostrando cartazes de eventos dos vários órgãos federais sobre os mesmos assuntos, com os mesmos palestrantes, acontecendo quase que simultaneamente: ninguém se falava, ninguém se conhecia, ninguém sabia os mandatos dos vários órgãos e instituições públicas ou seus limites de atuação. A animosidade era tamanha que o Ministério Público ameaçava com frequência processar os órgãos irmãos, e não os criminosos.

Vestidos com informalidade, não há distinção pelo peso dos cargos dos participantes de diversos órgãos. Nos crachás, o que aparece com facilidade são os órgãos para os quais trabalham. Na hora de falar, levantam um prisma com a sigla de sua entidade. Não há chefes, nem hierarquias na Enccla. Apenas a coordenação do DRCI, que agenda e acompanha as reuniões dos grupos de trabalho.

Segundo os participantes do evento, também não há ideologia ou influências político-partidárias nas decisões. Todas são tomadas por consenso: se algum órgão explicita com clareza os motivos pelos quais discorda, a ação não é levada adiante. Tanto que não é incomum, durante os intervalos das reuniões de trabalho, os participantes saírem da sala para aparar arestas, depois de algumas caneladas.

“Aqui é um lugar de convergência: colocam-se as pessoas certas na mesma sala para resolver um problema específico”, afirmou Gerson Schaan, coordenador-geral de pesquisa e investigação da Receita. “Sem dúvida nenhuma, isso aproxima profissionais e órgãos, com um efeito multiplicador ao longo dos anos, conforme os participantes vão entrando e saindo.”
No meio do ano, o Ministério Público convidou, por meio da Enccla, funcionários do Coaf para participar de uma capacitação, e é exatamente esse o termo legal, concedido por um delator da Lava-Jato. O criminoso ensinaria aos funcionários do governo como é possível aparecer tanto dinheiro vivo nas operações, mesmo com os controles sobre os bancos.
Os servidores descobriram um mundo paralelo. Entre outras coisas, um comércio de dinheiro vivo, mantido na base de ameaças e coação, feito sobretudo com lotéricas. Os bandidos compram o dinheiro vivo de lojas, em troca do transporte. Ficam com o papel e depositam o valor em cheques ou fazem transferências. Esfriam, assim, o dinheiro. Se recusarem, as lotéricas são ameaçadas de serem assaltadas, no transporte dos valores ao banco.

A intenção é tirar a rastreabilidade: seguir o dinheiro é o mantra principal nas investigações de combate ao crime organizado e à corrupção. “Era um dinheiro que não estava no sistema porque não saiu dos bancos”, disse Antonio Ferreira, presidente do Coaf. “É como se existisse um sistema bancário paralelo, movido pela informalidade, que é altíssima no Brasil.”

Essa oitiva serviu como parte do trabalho para uma das 11 ações da última Enccla: a proposta de restringir o uso de dinheiro em espécie. Neste primeiro ano, foi feita uma ampla pesquisa sobre o tema em outros países, os projetos de leis existentes no Brasil e eventuais limites constitucionais. Em boa parte da Europa, por exemplo, compras em dinheiro vivo são limitadas entre € 2,5 mil e € 3 mil.

A ação prossegue no ano que vem, quando mais de 20 entidades estudarão os impactos que restrição semelhante poderá causar na economia brasileira, bem como determinar o limite do valor imposto para a aquisição de bens com dinheiro vivo e punições a quem descumpra a determinação. Se avançar, a restrição acontecerá para aquisições de mercadoria em dinheiro e não para o porte, a guarda e o transporte das notas.

Neste ano, também foram desenvolvidas ações como a elaboração de um plano de diretrizes no combate à corrupção, medidas para combate de fraudes na saúde pública, contra a corrupção privada, de compartilhamento de notas fiscais emitidos por toda a administração pública. “Aqui é o lugar de jogar a semente e esperar brotar”, afirmou Schaan, da Receita. “Somos técnicos e muitas vezes encontramos caminhos que devem passar pela política, como a aprovação de projetos de lei, e aí o tempo é outro.”

Na última edição, foram convidados movimentos regionais à plenária, ao mesmo tempo em que alguns órgãos estaduais, como o MP/RN ou a Procuradoria-Geral da Bahia, continuam tendo assento nos debates. “Ainda é um embrião de como trabalharemos, já que estimulamos a participação regional há pelo menos cinco anos”, afirmou Sílvia. “Mas a ideia é trazer as representações, não só dos órgãos estaduais, mas dos federais representados nos Estados.”

Seriam espécies de mini-Encclas, levando as práticas, conhecimentos e trazendo demandas para a nave-mãe.
Como ocorre em outros Estados, Rodrigo Lubiano Zanotti, coordenador do Fórum de Combate à Corrupção do Espírito Santo (Focco-ES), sentia na prática a falta de uma estratégia regional semelhante à federal. “O que tenho para avaliar uma licitação estadual ou municipal são processos administrativos e notas fiscais que, via de regra, estão corretos no papel”, afirmou Zanotti, que também é auditor do Tribunal de Contas daquele Estado. “Quando as diferentes instituições somam armas, é como se montássemos um quebra-cabeça: muitas vezes uma investigação feita pelo MP pode ser completada por dados desses papéis que aparentemente estão corretos e vice-versa, criando uma ação penal com provas robustas.”

Criado há dois anos, o Focco-ES, como ocorreu em nível federal, está sendo permeado por tecnologia e inteligência artificial. Num dos exemplos, um banco de dados de notas fiscais eletrônicas evidenciará valores de mercadorias negociadas em determinadas áreas do Estado. “Se vai haver uma licitação de luvas cirúrgicas num município, por exemplo, é informado o preço médio praticado pelo mercado daquela região, antes do pregão acontecer”, disse Zanotti. “O processo sequer é travado porque antes do lançamento já há uma referência de partida.”

O sistema de inteligência artificial também deverá alertar sobre fugas de padrões de consumo médio de combustível, peças de manutenção ou qualquer outro item que se queira. Segundo ele, há cinco anos as informações só chegavam de três a cinco meses depois de feitas as licitações. “O Brasil é um país de poucos controles e uma corrupção fora de controle”, disse. “A sociedade está reclamando, os Estados estão quebrados e chegou a hora de acelerar essa implantação.”

Outra ação que mereceu destaque é o aperfeiçoamento das polícias civis na investigação de lavagem de dinheiro. Na linha do que Moro chama de “descapitalização” do crime organizado, a ideia é fazer com que a Polícia Civil trilhe o mesmo caminho percorrido pela Federal, há cerca de dez anos. “Quando se fala em lavagem de dinheiro, imediatamente se pensa em corrupção”, disse George Couto, diretor do Departamento de Inteligência e Gestão da Informação (DGI) da Polícia Civil-DF e representante do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CONCPC) na Enccla. “Só que, quando se descapitaliza uma organização criminosa, impede-se muitos outros crimes, como latrocínios, tráfico de drogas, roubos a banco, e pode-se controlar, inclusive, o processo epidêmico de crimes contra a vida que o país tem vivido.”

De acordo com ele, a intenção é buscar uma mudança de cultura de longo prazo, já que as polícias civis têm tradição de investigar crimes pontuais, sem atacar suas causas. No primeiro ano dessa ação, foi feito um levantamento do estágio em que se encontram todas as polícias civis do país. Há desníveis gritantes, evidentemente, entre os Estados mais e menos ricos do país. Para o ano que vem, a ação será aprofundada com uma busca por fortalecer as polícias civis, dotando-as de estruturas mínimas de trabalho, bem como treinamento para investigações com mais inteligência. “A ideia é sistematizar e a lavagem de dinheiro entrar no escopo das investigações de todos os crimes”, afirmou Couto.

Mas, por mais que o Estado tenha tentáculos e órgãos de controle, a grande aposta da estratégia é no engajamento da sociedade civil, para potencializar a fiscalização. “Como fazemos parte de órgãos públicos, temos mandatos muito delimitados de atuação”, diz um dos participantes. “Já a sociedade civil tem um espectro maior e pode fazer tudo que não é proibido.”

Uma das entidades que se apresentaram na Enccla foi o Observatório Social São José, de Santa Catarina. Ele faz parte de uma rede homônima de ONGs, presentes em mais de cem cidades, onde cidadãos dedicam gratuitamente algumas horas de seu dia para fiscalizar a aplicação de recursos públicos do Executivo e do Legislativo em seus municípios.

No caso catarinense, a articulação é feita por meio de WhatsApp, com mais de cem participantes. “Nossa recomendação é que o cidadão não fiscalize sozinho em função dos riscos”, disse Jaime Luiz Klein, vice-presidente executivo do Observatório São José, que tem se destacado por ter formalizado os processos e ajudado iniciativas semelhantes a se multiplicar. Entre as regras que encontraram, estão representatividade de toda a sociedade, recursos financeiros (no caso deles, de R$ 5 mil mensais) e conhecimento dos processos públicos de licitação e contabilidade.

Com a fiscalização, os resultados logo apareceram. No primeiro ano de atuação, em 2012, a sobra do orçamento da Câmara de Vereadores de São José era praticamente inexistente, de cerca de R$ 300 mil.

No ano seguinte, com a cobrança apenas de transparência por parte do Observatório, o valor foi de R$ 4,2 milhões. Quando a iniciativa passou a fiscalizar contratos, servidores comissionados e outras possíveis fontes de desvio, metade do orçamento ficou no caixa da Câmara. “Pode parecer pouco o valor de R$ 10 milhões, mas se a metodologia se espalhar pelos 5.570 municípios do país, quanto não será possível fazer?”, perguntou Klein. “E se não existisse o Observatório e o movimento cidadão fiscal, será que esse dinheiro estaria sobrando e sendo devolvido ao Poder Executivo, que pode então investir mais em segurança, saúde e educação?”

Agora, eles começam a entrar na Justiça com ações para dar transparência total à administração pública do município. Só neste ano, o Observatório levou adiante três ações diretas de inconstitucionalidade, sendo que uma delas questiona 70% dos cargos comissionados. Receberam parecer favorável do Ministério Público de Santa Catarina e, caso seja considerada procedente, a expectativa é de uma economia de R$ 20 milhões por ano.

Além de iniciativas como essa, há outras que aproveitam a escala trazida pela tecnologia, como a Operação Serenata de Amor, em que experts em tecnologia voluntários criaram um robô que analisa os gastos reembolsados pela Cota para Exercício da Atividade Parlamentar, de deputados federais e senadores. Caso encontre alguma irregularidade, Rosie, a robô, pede explicação nominalmente no Twitter. Até hoje, foram mais de 8 mil reembolsos suspeitos, que envolveram R$ 3,6 milhões e resultaram em 630 denúncias. Há agora um crowdfunding para estender o serviço aos níveis estaduais e municipais.

Em agosto, estimulada por uma das ações da Enccla de fortalecimento da rede colaborativa, o HackFest juntou 250 maratonistas que desenvolveram ideias e aplicativos voltados à participação social na política, ao controle social e ao combate à corrupção. “O combate à corrupção precisa ser feito como uma ação coletiva”, disse Luciana Asper y Valdés, representante da Comissão Nacional do Ministério Público na Enccla e coordenadora de uma ação para fortalecer essas iniciativas. “Colocamos na cabeça que é um dever do Estado, mas existem frentes que se não forem feitas pela sociedade, o problema nunca será resolvido.”

O clamor público em tamanha escala, porém, tem efeitos colaterais que geram preocupação. Algumas delações premiadas que resultaram em grandes escândalos não se comprovaram. Mesmo absolvidos pela Justiça, diversos denunciados tiveram vidas abaladas. Delegada da PF, a própria Érika Marena esteve à frente das investigações da Operação Ouvidos Moucos – o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier suicidou-se dias após ter sido preso e afastado do cargo pela operação.
“Existe há muitos anos, mas de modo mais exacerbado depois da Lava-Jato, um deslocamento rumoroso da neutralidade esperada de um juiz”, afirma Davi Tangerino, professor da área de direito penal da FGV Direito SP. “Manifestações públicas de associações de magistrados se posicionam há muito tempo como atores do combate ao crime, o que cria um problema sistêmico: se eles estão combatendo, quem está julgando?”
“Quando se coloca o Judiciário como um poder ativo no enfrentamento da questão de segurança pública, ele deixa de ser neutro”, afirma Tangerino.

O risco é que o sistema de freios e contrapesos, em que Montesquieu (1689-1755) descreveu o poder controlando o próprio poder, com uma clara divisão na competência de cada um deles, perca um de seus prumos. “Quem desempata um conflito, quando todos os atos são políticos?”, ele perguntou.

No país onde se está montando uma grande força-tarefa para marcar a gestão do próximo governo, a questão não é trivial.

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