Morte de miliciano é seguida do silêncio do presidente e de Moro
De tão nebulosa e mal explicada, a relação entre a família Bolsonaro e a milícia parece um daqueles mistérios insondáveis, supostos assuntos de Estado que governos carimbam como “top secret”. Ao que tudo indica, o selo de alta confidencialidade dura enquanto durar a correlação de forças e a popularidade do bolsonarismo, por sinal pouco abalado pela proximidade do presidente com os grupos paramilitares que praticam extorsão em cada vez mais extensos territórios no Rio, ou fora dele. As mílicias – formadas por PMs, policiais civis, bombeiros – já foram “exportadas” para mais da metade dos Estados brasileiros. Mas é no Rio, e com o apoio do clã Bolsonaro, que cresceram e se aliaram ao poder político.
O presidente da República e seu filho mais velho já defenderam com ardor a existência dessas organizações criminosas que cobram os mais variados tipos de “pedágios” às populações ameaçadas e subjugadas. Da taxa de segurança a moradores e comerciantes aos botijões de gás comercializados com ágio; do transporte ilegal de vans ao fornecimento clandestino de TV por assinatura, internet e energia elétrica; da venda de imóveis irregulares à exploração de novos produtos e serviços como cestas básicas, consultas médicas, seguros de carro e recolhimento de lixo. Sobre estas regiões, já não se fala mais de Estado paralelo. A milícia é o próprio Estado. E tem suas relações institucionais construídas nos escombros de uma polícia civil e militar em sua face falida, corrupta e violenta.
Era dessa PM que vinha o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, morto numa troca de tiros com a polícia no fim de semana numa operação no interior da Bahia. Foragido há mais de um ano, Nóbrega – ou ‘capitão Adriano’ – foi apontado por seu próprio advogado, Paulo Emílio Catta Preta, como alguém que queria se entregar, mas temia ser morto, numa queima de arquivo.
Não é preciso fazer nenhuma ilação. Registre-se apenas a mudez que se seguiu desde domingo pela manhã por parte de Bolsonaro e de seu entorno. O presidente da República não teve o mesmo comportamento de quando era parlamentar, em 2005, e saiu em defesa de Nóbrega, em discurso na Câmara. À época Bolsonaro qualificou Nóbrega, que estava preso desde o ano anterior, como um “brilhante oficial” e criticou sua condenação pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, que havia denunciado policiais.
A campanha pró-Nóbrega na família já tinha sido iniciada em condecorações patrocinadas pelo filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro. Então deputado estadual, Flávio propôs uma moção de louvor ao PM em 2003 e, dois anos depois, foi autor de nova homenagem na Assembleia Legislativa do Rio, concedendo a Adriano Nóbrega a Medalha Tiradentes, comenda mais importante da Casa, quando o policial já estava preso, sob a acusação de homicídio.
Com o histórico de tanta solidariedade, é de se perguntar por que Jair Bolsonaro ainda não decretou luto oficial de três dias pela morte do companheiro miliciano. A família preferiu o silêncio. O ministro da Justiça Sergio Moro, que, há quase duas semanas, havia excluído Nóbrega da lista dos criminosos mais procurados do país, também não se pronunciou.
Sobre bandidos que perdem a vida abatidos por policiais ou por cidadãos que agem em legítima defesa, os bolsonaristas costumam reagir de forma irônica: “Menos um CPF”. Acusado de vários assassinatos e de participar de um grupo de matadores de aluguel – o Escritório do Crime – o ‘capitão Adriano’ não foi alvo do mesmo sarcasmo.
O que gira em torno do personagem inspira respeito e cautela, dado seu potencial explosivo. Nóbrega não era apenas um dos inúmeros policiais homenageados ao longo dos anos pelos Bolsonaro – integrantes ou não da banda podre da corporação. Era alguém de confiança que havia indicado a mãe e a ex-mulher para trabalhar no gabinete de Flávio na Alerj, durante o período de 12 anos em que o ex-deputado praticou, segundo o Ministério Público do Rio, esquema de “rachadinha” no qual apropriou-se de parte do salário de quase uma centena de funcionários.
Apontado como o operador do suposto esquema ilegal de enriquecimento, o PM da reserva Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, serviu junto com Adriano Nóbrega no mesmo 18º Batalhão de Jacarepaguá, na zona oeste carioca. Em 2003, os dois se envolveram num homicídio ao fazer uma ronda na Cidade de Deus. Queiroz trabalhou no gabinete de Flávio, mas sua relação é com o pai Jair, de quem é amigo desde o início dos anos 1980.
O Brasil está numa democracia, as instituições estão alegadamente funcionando – tão bem quanto as escolas e os hospitais públicos – mas o sistema judicial não consegue desvendar informações, conexões e crimes que a sociedade vai naturalizando como insolúveis. O instituto da condução coercitiva já levou um mandatário da República a depor no aeroporto de Congonhas mas, hoje em desuso, não atinge Queiroz, o velho amigo de pesca de Bolsonaro.
O elo entre o presidente e Nóbrega ficou mais difícil de ser reconstituído graças a uma operação policial que, intencionalmente ou não, destruiu um arquivo vivo. Entre os maiores opositores de Bolsonaro e presidente da CPI das Milícias da Alerj em 2008, o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) argumenta que a grande questão sobre o ‘capitão Adriano’ são seus laços com a família Bolsonaro e menos com o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes.
“A grande questão do Adriano é essa relação dele com a família Bolsonaro. Eles não foram criados juntos. Não são amigos de infância. Quando eles [da família Bolsonaro] resolvem ter tanta relação com o Adriano, o Adriano já tinha envolvimento com o crime. É preciso que se esclareça”, diz Freixo, para quem a morte do ex-PM não esfria o interesse pelo caso: “Isso atiça mais a curiosidade. O primeiro passo é saber o que tem nos 13 celulares encontrados com ele. Não tenho dúvida de que tem muita informação nesses telefones”.