Uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar
A menina não é uma exceção. Todos os dias, sete dias por semana, semana a semana, mês a mês, 365 dias por ano, seis meninas, entre 10 e 14 anos, são internadas em hospitais brasileiros para fazer abortos ou para tratar das consequências de abortos mal feitos, improvisados. Seis meninas estupradas, seis meninas grávidas. Por dia. Todos os dias. Vá saber quantas sequer chegam aos hospitais, quantas não levam a gravidez a termo, quantas abortam em casa, quantas apenas têm seus filhos por aí e morrem como crianças para se tornar mulheres partidas, mães de outras meninas que, meninas, vão ser estupradas e ter outras meninas e outras e outras, num círculo vicioso de perpétuo descaso.
A menina só virou exceção por causa da covardia da equipe médica que a atendeu inicialmente no Espírito Santo, e que não só a obrigou a atravessar o país em busca de socorro como, provavelmente, vazou a notícia do que lhe acontecia para a curriola pestilenta que cerca o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (que ironia).
A menina só virou exceção porque Sara Giromini, filha espiritual da ministra Damares, a expôs na internet, e fundamentalistas religiosos fizeram tanto barulho que, hoje, quando a gente diz “a menina”, todos sabem de qual menina estamos falando.
A menina.
A vítima de uma sucessão de crimes, do estupro e da incúria familiar à indizível atitude da equipe do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, que se recusou a cumprir a lei, passando pela exposição do seu nome na internet e pelo furor de hipocrisia que a perseguiu em casa e na porta do hospital.
Os obscurantistas que se manifestaram contra o direito de uma criança de dez anos de continuar a viver como criança são tão criminosos quanto o tio que a estupra desde os seis.
Uma inocente cercada de culpados e de gente má, uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar. Dom Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, chegou a dizer que, “se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa, culminando com violento estupro, gravíssimo foi o aborto realizado em Recife, quando todo o esforço deveria ser voltado para a defesa das duas crianças, mãe e filha”.
Não, Vossa Excelência Reverendíssima; o aborto realizado no Recife foi uma benção, um milagre da lucidez operando num país tenebroso. Não há “mãe” nessa história horrenda, há apenas uma criança violentada, que não tem condições físicas ou psíquicas de exercer a maternidade.
Num mundo digno e são, líderes religiosos teriam dado apoio à vítima, e não respaldo ao crime. Mas Dom Fernando foi secundado pelo presidente da CNBB, Dom Walmor, para quem é “lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses cuja mãe é uma menina de dez anos”.
Eu queria muito saber a opinião do Papa Francisco sobre esses dois senhores. O Papa Francisco lançou no começo desse ano um livro sobre tolerância e paz para crianças, e dizem que ele é um homem bom.