Não se combate vandalismo constitucional sem tirar vândalos do poder
O negacionismo pandêmico pode matar qualquer um de nós. Já o negacionismo político, aquela displicência soberba diante do custo democrático e humanitário que Jair Bolsonaro nos impõe, parece mais inofensivo e pode poupar nossa vida. Basta manter o bom comportamento e não abusar da liberdade (científica, acadêmica, artística, de imprensa).
O casamento de ambos tem permitido a Bolsonaro inviabilizar uma política sanitária responsável e ao mesmo tempo se livrar de sanções pelo vandalismo constitucional que imprimiu em seu governo. O tamanho do dano é intangível e transcende a morte de centenas de milhares de pessoas.
Vandalismo constitucional, expressão que voltou à tona no debate anglo-saxão sobre o que Boris Johnson e Donald Trump infligiram às normas do jogo democrático, denota um estilo governamental de confrontação permanente. A confrontação não se dá exatamente com a lei, que vândalos ignoram por vocação, mas com a capacidade de resistência das instituições de controle. Preocupam-se com inimigos, não com a legalidade.
Vândalos não cometem um crime de responsabilidade. Cometem crimes de responsabilidade seriais e continuados. Foi, talvez, como Carlos Ayres Britto tentou definir Bolsonaro dias atrás: governa “de costas para a Constituição”, tem “o pé atrás com essa Constituição”, caminha “na contramão da Constituição”, adota como estilo “um ódio governamental de ser”.
Eleições são o método ordinário para premiar ou punir agentes políticos por seu desempenho. Quando vândalos eleitos ameaçam a ordem constitucional ou põem em xeque a própria integridade das eleições futuras, o impeachment e o julgamento por crime comum são as válvulas de escape de que dispomos. São formas de proteger a vontade dessa instituição chamada povo.
Não há qualquer nuance na avaliação moral do governo federal. Menor ainda é a complexidade da avaliação jurídica. Tudo é demasiadamente bruto, sem zona cinzenta. Nenhum presidente brasileiro eleito chegou tão perto de gabaritar a Lei do Impeachment.
Começou antes da pandemia, mas a crise sanitária precificou essa postura numa moeda indisfarçável: número de mortes diárias, de UTIs sem oxigênio, de testes vencidos, de placebos estocados, de protocolos ironizados em praça pública, de seringas não compradas, de vacinas não negociadas. Fatos duros que vencem até mesmo a indústria da desinformação.
E não foi só por incompetência de um general estúpido convertido em dublê de ministro que comete crimes sem se tocar. O projeto está documentado, tuitado e televisionado. Não adianta desmentir no grito porque a esfera pública não é quartel e cidadãos não somos recrutas que seguem ordens de cima para baixo.
Se não há dilemas morais ou jurídicos, o cálculo político ainda atrapalha o disparo de processo de impeachment. A ciência política detectou algumas leis gerais da competição democrática. A primeira constata que um presidente se elege quando tem base partidária capilarizada que lhe dê palanque, recursos e tempo de TV. A segunda observa que um presidente cai quando há crise econômica, algum consenso popular e gente nas ruas.
A eleição de Bolsonaro fugiu da primeira lei. Sua eventual destituição pode ter que adaptar a segunda lei. No contexto de pandemia, e com mais de 60 pedidos de impeachment na gaveta da presidência da Câmara dos Deputados, prognósticos sobre como e quando aquelas condições se apresentarão ainda geram muita dúvida.Contudo, após dois anos de vandalismo constitucional turbinado por uma pandemia, vamos percebendo que os mesmos argumentos de prudência que desencorajavam o impeachment começam a virar de lado.Não basta mais argumentar que um processo de impeachment tira o foco da pandemia, gera instabilidade e produz novo trauma institucional, pois isso o presidente também faz, e bem.
É necessário mostrar o quanto a sobrevivência política de Bolsonaro é menos custosa que tudo isso. Estamos falando de operação de salvamento, não de consolidação da democracia. Com receio de banalizar o impeachment, vamos banalizando o crime de responsabilidade.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.