Cúpula do CFM permitiu que presidente convertesse o uso de remédios fora da bula em uma política para covid-19
Do púlpito da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em Nova York, no dia 26 de setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro discursou para o mundo: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina (CFM)”. Bolsonaro aproveitou o encontro para seguir defendendo o uso de medicamentos sem eficácia contra a covid-19 um ano e sete meses depois de o vírus chegar ao seu país, e enquanto as mais respeitadas agências internacionais desaconselhavam o uso de medicamentos como cloroquina. Para isso, usava um artifício do qual lançou mão muitas vezes: ancorava-se em um suposto respaldo do CFM, que emitiu uma autorização para o uso destes remédios off label ―fora da bula― no início da pandemia e, até hoje, não a revisou, apesar das novas evidências científicas de sua ineficácia. A narrativa de Bolsonaro se favoreceu do silêncio da entidade, que jamais foi a público contradizer o presidente.
A alta cúpula do Conselho mostrou-se repleta de nomes ligados ao bolsonarismo. Hoje investigada pela CPI da Pandemia e pelo Ministério Público Federal por endossar o chamado kit covid, tem tentado se proteger, argumentando que apenas autorizou o uso dos medicamentos e que na verdade nunca os recomendou. O papel de recomendar era do presidente, que exibiu caixas de cloroquina em suas lives semanais e praticamente converteu o uso de remédios fora da bula em política pública. Contou inclusive com a participação de alguns membros do CFM nos vídeos publicados nas redes sociais, defendendo autonomia médica para prescrever o kit covid ou criticando governadores que tentavam trazer médicos estrangeiros durante o auge da crise. Enquanto isso, na prática, a autarquia responsável por fiscalizar e regular a atividade médica no país, mostrava-se cada vez mais alinhada ao Governo. Que caminhos levaram o CFM a respaldar a errática política de Bolsonaro na pandemia?
As últimas eleições das diretorias dos conselhos regionais e federal de Medicina ocorreram em 2019, primeiro ano do Governo Bolsonaro. Vários foram eleitos na esteira do bolsonarismo e sob o discurso da polarização entre direita e esquerda. No ano anterior, Cuba havia anunciado o fim do acordo com o Brasil para enviar médicos cubanos ao programa Mais Médicos, criado pelo PT para garantir atendimento nas áreas mais remotas do Brasil. O controverso programa recebia forte oposição na classe médica. O CFM se contrapunha à dispensa do Revalida, uma prova necessária para permitir a prática médica no país. Ao assumir, Bolsonaro, que já era um crítico do programa e foi eleito sob o manto do antipetismo, abriu espaço aos conselhos no Governo. Começava ali a se fortalecer uma relação que trouxe desdobramentos questionáveis durante a pandemia.
“Há muito tempo o Conselho Federal de Medicina não tem uma relação de proximidade com o Governo Federal. A nova gestão abriu essa oportunidade para as entidades médicas”, admitiu ao EL PAÍS o então primeiro secretário do CFM, Hermann Von Tniesehause, em fevereiro de 2019. Segundo ele, o Governo compartilhava proposta e ouvia a classe médica. Alguns meses depois, enquanto Bolsonaro tinha seu negacionismo exposto em plena pandemia, esta relação parecia estar ainda mais consolidada. O próprio presidente do CFM, Mauro Luiz Ribeiro, admitiu apoio ao Ministério da Saúde e ao presidente, além de sugerir que participa de decisões normativas, sem citar quais.
CFM desembarca no Planalto
“O presidente Bolsonaro já nos recebeu cinco vezes no Palácio do Planalto desde que ele assumiu o Governo, há um ano e quatro meses. Todas as nossas reivindicações foram atendidas pelo presidente da República”, disse em uma live de maio de 2020 um representante do Conselho Regional de Medicina de Goiás. “Quando existe diálogo, antes que as normas sejam postas, você tem a oportunidade de consensuar aquilo que vai ser proposto. E este é o caminho que estamos seguindo no Governo Bolsonaro”, afirmou em gravação recuperada pelo site Metrópoles.
Aquela efervescência com a qual membros dos conselhos criticavam os médicos cubanos em nome da boa prática médica e da regulação arrefeceu mesmo quando Bolsonaro posicionou-se contra o isolamento social, prometeu curas milagrosas ou pôs em xeque a eficácia das vacinas. Paralelamente, cargos-chave do CFM iam abandonando a discrição e expondo suas posições políticas. É o caso do terceiro vice-presidente do CFM, Emmanuel Fortes, que não costuma esconder seu apoio ao presidente. Filiado ao PSL, ele tentou cargos públicos nas três últimas eleições, mas não conseguiu se eleger.
Fortes se estabeleceu como um dos maiores defensores do chamado “tratamento precoce”, mesmo com falta de comprovação científica, e teria integrado o gabinete paralelo do Governo, geralmente desalinhado em relação às políticas conduzidas pelo Ministério da Saúde. “A gente tem que dizer àqueles que prescrevem [a cloroquina] que a salvaguarda deles é muito maior do que para quem não prescreve”, afirmou a colegas, em vídeo recuperado pelo The Intercept Brasil. Foi ele o representante do Conselho em uma reunião promovida em julho do ano passado pela secretária de Gestão e Trabalho, Mayra Pinheiro, para propagandear a cloroquina.
Apelidada de “capitã cloroquina” por insistir no uso do medicamento enquanto pessoas com covid-19 morriam asfixiadas na crise de oxigênio em Manaus, Mayra Pinheiro integra a Comissão Mista de Especialidades Médica do CFM. Ela tem conseguido manter seu cargo no Ministério da Saúde mesmo após Bolsonaro mudar o ministro três vezes. Assumiu na gestão Mandetta, atravessou o rápido período de Nelson Teich, seguiu com Eduardo Pazuello e continuou na gestão de Marcelo Queiroga, mesmo com supostos atritos entre eles. Recentemente, um assessor do ministro a acusou de conspirar para derrubá-lo e Pinheiro chegou a registrar um boletim de ocorrência após se sentir ameaçada por ele.
Apoio ao negacionismo
A CPI da Pandemia ―que já vinha investigando membros do Governo e médicos que teriam participado de um gabinete paralelo e dado sustentação à tese de oferecer remédios como curas milagrosas ― avançou também sobre o Conselho Federal de Medicina. O presidente Mauro Luiz Ribeiro foi incluído entre os investigados por “apoiar o negacionismo”, dar “suporte dos medicamentos sem comprovação científica” e “apoio dos crimes cometidos”, segundo o relator Renan Calheiros. Na prática, o peso da entidade terminou ajudando a estimular a população a se expor em nome de uma imunidade de rebanho almejada pelo Governo. O EL PAÍS tentou ouvir o CFM, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Há, no mínimo, um timing curioso entre as ações do Ministério da Saúde e a atuação do Conselho na estratégia de distribuição de medicamentos sem eficácia para a covid-19, apontam especialistas. Em abril de 2020, o então ministro Luiz Henrique Mandetta autorizou o uso da cloroquina para casos graves de covid-19. No mesmo mês, foi publicado o parecer do CFM que autoriza o médico a prescrever a cloroquina para pacientes com diagnóstico confirmado em diferentes fases da doença. No documento, o Conselho deixa claro que o médico que optar pela prescrição não responderá a um processo ético-profissional que poderia culminar com punição como advertência, suspensão ou até perda do registro.
“O problema é o contexto político do parecer”, explica o advogado e médico sanitarista Daniel Dourado. Após o parecer do CFM, o Governo federal passou a distribuir cloroquina aos Estados. Mandetta já havia deixado o cargo por divergências com Bolsonaro sobre as ações da pandemia. Seu sucessor, Nelson Teich, ficou apenas um mês como ministro e saiu após resistir em publicar um protocolo de uso da cloroquina. Foi apenas durante a gestão do terceiro ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, que um documento que expandia o uso da cloroquina foi publicado, também para casos leves e iniciou-se a narrativa do chamado “tratamento precoce”. Era maio de 2020.
“Mesmo sem qualquer evidência de eficácia e segurança, a gente autoriza o médico que quiser usar. É uma autorização perigosa pra um contexto de pandemia, tem um caráter até de incentivo quando juntamos as peças do quebra-cabeça”, critica Leonardo Furlan, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP. Junto com Bruno Caramelli, que é cardiologista e professor na mesma instituição, ele publicou um artigo na revista científica britânica The Lancet no qual denunciam o uso de medicamentos ineficazes para a covid-19 sob o incentivo do Governo e a inação do CFM.
Um escudo para a retórica de Bolsonaro
Se Bolsonaro usava o CFM como escudo e incorporava o discurso da autonomia dos médicos para prescrever os remédios mesmo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) rechaçar seu uso, profissionais passaram a denunciar que eram obrigados a receitá-los por planos de saúde alinhados ao Governo. O CFM poderia ter agido para minimizar os danos à população, mas seu presidente até hoje se recusa a rever a decisão e diz que há polarização política sobre o tema. Em entrevista ao Estado de S. Paulo, Mauro Ribeiro chegou a dizer que estudos científicos internacionais adotados como parâmetro pela OMS não são suficientes para mudar de posição e que é preciso considerar a observação dos médicos na ponta.
“Você está deturpando o raciocínio da prática clínica baseada em evidências. A observação ou experiência clínica é fundamental, mas ela não pode passar por cima das evidências científicas”, retruca Furlan. “Além disso, não estamos falando de um uso off label aqui e ali, estamos falando de algo que tomou uma proporção enorme na pandemia e virou uma política de saúde pública no país. Este é o problema”, acrescenta.
Dourado lembra que Bolsonaro costumava usar com frequência a nota do CFM como escudo para defender a cloroquina, e o conselho nunca publicou uma nota desmentindo. Soma-se a isso a reprodução de discurso similar ao do presidente sobre outros temas. Por exemplo, o CFM diz que é favorável à vacinação contra a covid-19, mas é contra a obrigatoriedade da imunização. “Essa conivência deles criou um conselho político que incentivou muitos médicos, até de boa fé, a prescreverem estes medicamentos acreditando que estavam ajudando o paciente. A ação política do CFM foi deletéria”, analisa.