Após derrotarem os EUA, comunistas criaram ditadura capitalista
Quem ganha com os encontros de Donald Trump com o ditador norte-coreano Kim Jong-un? Ganha o Vietnã, o palco das reuniões.
Fácil de explicar: por mais cor de rosa que venham a ser os anúncios oficiais sobre a cúpula dos dois mandatários, é altamente improvável que haja algo realmente decisivo quando as duas mais altas autoridades de um dos lados não se entendem sobre o estado do programa nuclear norte-coreano —que é, afinal, o tema do encontro.
Trump anunciou em seu meio de comunicação favorito, o Twitter, que a Coreia do Norte “não é mais uma
ameaça nuclear”.
Aí, seu secretário de Estado, Mike Pompeo, vai à CNN e contradiz o chefe, ao afirmar que a Coreia do Norte é, sim, uma ameaça nuclear.
Como os dois são os interlocutores de Kim em Hanói, como acreditar no que qualquer um deles diga?
Já sobre o Vietnã, não cabem dúvidas: esse remoto país do Sudeste Asiático ascendeu ao foco da mídia ao agasalhar os dois ex-inimigos, hoje apaixonados um pelo outro, pelo menos da boca para fora.
Ascendeu por um motivo nada trivial: foi o único país a ganhar uma guerra contra os Estados Unidos e, em seguida, ganhar também a paz, o que não é nada fácil.
Por isso mesmo, Huong Le Thu, analista-sênior do Instituto Australiano de Política Estratégica, escreve para a Nikkei Asian Review: “Há sinais de uma emergente estratégia americana de encorajar a Coreia do Norte a embarcar em reformas políticas e econômicas como aquelas abraçadas por Hanói nas últimas três décadas.
O programa de reformas —batizado em vietnamita de “Doi Moi” (renovação)— foi lançado em 1986 e transformou o país em atraente destino para investimentos externos, ao mesmo tempo em que manteve o absoluto controle do Partido Comunista sobre as instituições.
Se se quiser simplificar as coisas, dá para dizer que o Vietnã comunista, que derrotou os EUA capitalistas, transformou-se de uma ditadura comunista em uma ditadura capitalista.
A comparação com a Coreia do Norte, que continua comunista institucional e economicamente, é devastadora para Kim Jong-un: em 1988, pouco depois de lançado o “Doi Moi”, a renda per capita vietnamita era de cerca de US$ 1.500 (R$ 5.600) em paridade do poder de compra (a medida que leva em conta os preços em cada país). Era a metade do nível norte-coreano.
Dez anos depois, a renda norte-coreana, pelo mesmo critério, caiu pela metade, enquanto a do Vietnã quadruplicou e bateu, portanto, em US$ 6 mil (cerca de R$ 22,4 mil).
O crescimento do Vietnã nas duas décadas mais recentes foi, na média, de 6,3%, o que o transformou em uma das economias asiáticas de expansão mais rápida, relata a analista Le Thu.
“Espera-se que Mr. Kim olhe e aprenda”, torce a revista The Economist, ao tratar do encontro em Hanói.
A publicação, porta-voz do liberalismo, festeja que o Partido Comunista do Vietnã tenha se transformado de inimigo da América em “buddy”, termo informal que significa mais que amigo, um cupincha.
Mas, cuidado, esse modelo é tóxico para a liberdade de imprensa —componente essencial da democracia: Repórteres Sem Fronteiras coloca o Vietnã em 175º lugar entre 180 países em matéria de liberdade para a mídia. Ainda assim, é melhor que a Coreia do Norte, a 180ª.
*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.