O debacle da experiência de socialismo autoritária que predominou na Europa Oriental ainda está a merecer reflexões. Resolvi colocar no papel o que testemunhei de 1989 a 1992, quando era estudante em Praga, com o livro “Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo*. Compartilho a sua apresentação.
1 – Apresentação
Em março de 2016, minha filha Laura Willms de Oliveira, então com 15 anos, pediu-me para ver as manifestações na avenida Paulista pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Concordei, mas com uma condição. Iríamos não como manifestantes, mas como observadores, sem portar cores, símbolos, cartazes, nem reproduzir slogans. Expliquei-lhe que, como jornalista, não seria bom ter engajamentos. Preferia guardar certa distância de determinados movimentos e me sentir psicologicamente livre para fazer a crítica tanto ao governo quanto às oposições. Deixaria para expressar minha opinião nas charges no jornal Agora São Paulo e nos textos que escrevo nas redes sociais.
Quando chegamos à Paulista, ficamos impressionados com o gigantismo do protesto. Descemos do metrô lotado de jovens manifestantes. A avenida estava tomada e não conseguimos atravessar a multidão compacta em frente ao MASP. Resolvemos pegar a rua paralela, a alameda Santos, para alcançar a Paulista quarteirões adiante, na direção da rua da Consolação. Nova surpresa. A alameda estava tomada por pessoas em trânsito para os diferentes pontos de concentração na Paulista.
De imediato, a multidão me trouxe à memória outras grandes manifestações de que participei: a campanha das Diretas Já e a do candidato das oposições Tancredo Neves, entre 1983 e 1985, ambas pelo fim do regime ditatorial de 1964. Como também o movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Mas, pelo caráter dos protestos, as manifestações na Paulista me recordaram especialmente a Revolução de Veludo, o movimento que derrubou o regime comunista na então Tchecoslováquia e que presenciei quando lá estudava, entre 1989 e 1992.
Havia algumas diferenças entre os atos da Paulista e os da Praça de São Venceslau, no centro de Praga. Enquanto os primeiros eram difusos, sem uma liderança bem definida e convocados pelos chamados movimentos cívicos nas redes sociais, as manifestações na Tchecoslováquia eram dirigidas pelo Fórum Cívico, de dissidentes do regime, com a liderança do mais famoso deles, o dramaturgo Václav Havel (pronuncia-se vatslav ravel).
Porém havia semelhanças perturbadoras. Em ambos os protestos, formou-se uma frente ampla de diferentes setores políticos e sociais contra um governo que dizia representar os interesses dos trabalhadores. Nos dois casos, as reivindicações eram menos de caráter econômico e social, apesar da insatisfação com o declínio da economia do país. Tanto aqui como na Tchecoslováquia, a principal demanda dos manifestantes estava no campo da democracia política.
Em 1989, tchecos e eslovacos estavam dispostos a superar um asfixiante regime autoritário e ingressar no padrão democrático da Europa Ocidental. Já os brasileiros, desde as manifestações de junho de 2013, protestavam contra a baixa qualidade da nossa democracia, cujo sistema político era acusado de não mais representar os cidadãos, em meio a graves denúncias de corrupção que atingiram todos os grandes partidos.
Ainda em 2012, a população havia acompanhado ao vivo pela TV Justiça o julgamento da Ação Penal 470, a do chamado Mensalão, no qual o ministro do STF, Joaquim Barbosa, relator do processo, expunha o esquema de propina para parlamentares em troca de apoio ao governo. O processo resultou na condenação de vários réus e levou à prisão a cúpula do PT e de outros partidos governistas, como PTB e PR. As revelações posteriores da Operação Lava Jato, a partir de 2014, mostraram um grande esquema de corrupção em empresas públicas para o financiamento partidário e eleitoral e, em vários casos, de enriquecimento pessoal.
Outra coincidência perturbadora entre as manifestações tchecas e brasileiras estava nos argumentos das autoridades. Tanto lá como aqui, as cúpulas governistas acusavam as manifestações de representarem os setores políticos e sociais mais retrógrados, contrários aos interesses da maioria da sociedade, em especial do mundo do trabalho. Partidários do governo acusavam ainda a agência de espionagem norte-americana, a CIA, de estar por trás dos movimentos.
Esse debate para mim não era novo. Lembrei-me de quando entrei no antigo e ainda ilegal PCB, em junho de 1982, da repercussão, entre os militantes, de um editorial do jornal Voz da Unidade, órgão oficioso do partido, em que o PCB se somava à maioria dos PCs do mundo em apoio à Lei Marcial na Polônia, de dezembro de 1981, imposta pelo general Wojciech Jaruzelski, quando então o sindicato independente Solidariedade foi posto na ilegalidade.
Segundo os comunistas ortodoxos, o Solidariedade era supostamente uma articulação da CIA, da administração do presidente norte-americano Ronald Reagan, em conluio com o cardeal polonês Karol Wojtila, escolhido papa João Paulo II, em 1978. Nem a um militante neófito, como era então este autor, essa explicação era suficiente e convencia. Os operários do estaleiro de Gdansk não se mobilizariam aos milhares se não existissem de fato problemas que lhes afetassem. A Polônia passava por uma grave crise econômica e havia uma estagnação generalizada no Leste, desde fins década de 1960, rebaixando o padrão de vida dos trabalhadores da Europa Oriental.
Mas, indo além da análise economicista, tão comum em determinados setores da esquerda, o mais importante era que os operários liderados por Lech Wałęsa reivindicavam direitos democráticos básicos, entre eles o de greve, direito já incorporado à maioria dos países da Europa Ocidental na primeira metade do século XX.
Vários intelectuais do PCB, a maioria deles ligados à vertente eurocomunista, criticaram publicamente o apoio do partido à repressão ao Solidariedade e defenderam uma discussão crítica do modelo soviético. Esses intelectuais foram expulsos no início de 1983, e alguns deles foram reintegrados depois da autocrítica do Comitê Central, em 1987, quando os comunistas brasileiros passaram majoritariamente a apoiar as reformas democratizantes do último líder soviético, Mikhail Gorbatchev.
As semelhanças de situação entre a queda do regime comunista na Tchecoslováquia e a queda do governo petista no Brasil me levaram a escrever este livro. Editei textos que escrevi originalmente em meu blog em 2009, a propósito dos vinte anos da Revolução de Veludo. Utilizei trechos de alguns outros artigos, como o que publiquei na Folha de São Paulo sobre o jornalista Osvaldo Peralva, correspondente do jornal em Praga, entre 1991 e 1992. Anotei outras impressões que havia deixado de fora. Pesquisei e acrescentei informações históricas no intuito de oferecer uma visão panorâmica do processo político que desembocou na também chamada Revolução Carinhosa de 17 de novembro de 1989.
Ainda que de forma modesta, pretendo com este relato contribuir para o debate público do aperfeiçoamento da democracia no Brasil. Cito de memória muitos dos fatos que testemunhei, alguns anotados em agenda, outros guardados nas recordações das discussões com colegas estudantes em Praga. Verifiquei dados e fatos disponíveis na tentativa de oferecer informações precisas. De todo modo, é possível haver no texto erros ou imprecisões, a que me disponho prontamente corrigir. Espero que, no conjunto geral, as reflexões sobre o processo que levou à derrocada do chamado socialismo real contribuam para um bom debate.
*Cláudio de Oliveira, jornalista e cartunista