Bolsonaro e seus ministros inflaram expectativas
Antonio Gramsci está mais atual do que nunca, a julgar pelo que se ouviu em alguns pontos da Esplanada dos Ministérios na jornada de quarta-feira. Se antes estabelecer uma hegemonia cultural não era um objetivo claro de um grupo político no poder, agora é. Nos governos Lula e Dilma havia muita gente com uma visão leninista da condução da política e de aparelhamento do Estado, mas a unidade estratégica se perdeu em meio a disputas internas e ao surgimento de outras referências para a construção do poder.
Qualquer um que tenha acompanhando o tal do “lulopetismo”, para usar a expressão pejorativa dos vitoriosos de hoje, sabe que não foi a ideologia que guiou os governantes de então. A narrativa feita pela família Odebrecht, Antonio Palocci, Paulo Roberto Costa e tantos outros autores que explicam o Brasil é bastante eloquente neste sentido.
A entrada em cena de Ricardo Vélez, Ernesto Araújo e outros mostra a disposição do setor mais duro do bolsonarismo de praticar um exorcismo que, por óbvio, confirma a existência do demônio ao combater a sua presença. Parido das urnas por uma reação social à corrupção, os bolsonaristas chegam com o purismo característico das rupturas, do poder tomado de assalto sem uma construção paulatina que tenha envolvido composições e concessões. Há muitos anos não se percebia tamanho viés ideológico em uma administração, que tanto fala em desideologizar o Estado. A troca de cadeiras vermelhas por azuis no Palácio da Alvorada é mais um indício neste sentido.
Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação deixou claro que se vive uma guerra contra uma ideologia materialista que oprime a sociedade, tendo como combustível a “tresloucada onda globalista” e o “irresponsável pragmatismo sofístico”.
Vélez coloca a sua chegada ao Ministério da Educação como uma frente nesta batalha, cruenta a seu ver. Segundo o ministro, um dos lances desta guerra foi o atentado de Juiz de Fora, ocasião em que Bolsonaro foi esfaqueado, em 6 de setembro. Na visão de Vélez, houve um complô, urdido pelos mais ameaçados pela onda moralizante. “As maquinações tenebrosas da rua Halfeld ratificaram a certeza de que derrubaram um homem, mas levantaram uma nação”, disse.
Vélez se propõe a somar forças a uma onda restauradora dos pilares que acredita ameaçados: Família, Igreja, Escola, Estado e Pátria. O novo ministro não detalhou um único plano, sequer o tão falado Escola sem Partido, mas foi muito além disso: declarou-se pertencente a um movimento maior, a uma revolução restauradora.
Em seu discurso, Ernesto Araújo foi ainda mais ambicioso. Colocou o momento histórico atual como um ponto de inflexão na vida de cada um. Bolsonaro no poder significa cruzar de volta o rio do esquecimento e resgatar o conhecimento de quem verdadeiramente somos. Estávamos todos presos fora de nós mesmos. Bolsonaro liberta o Brasil por meio da verdade, que se vive como uma experiência íntima. “Precisamos libertar a nossa memória histórica”, disse Araújo, para quem o Itamaraty é o guardião dessa memória. “Isto aqui não é uma repartição pública, é um santuário”, afirmou.
Araújo destacou a importância do mito. Citou o exemplo de Dom Sebastião para ressaltar a importância de arriscar a própria vida para a defesa de um valor imaterial. “Não nos lembramos das pessoas que ficaram em casa”, disse. “O mito ensina a não ter medo e é curioso que, no momento, o mito é o apelido carinhoso que o povo brasileiro deu ao presidente”, disse.
Na visão desta ala do bolsonarismo, o que aconteceu esta semana não foi apenas uma alternância normal de poder, própria de uma democracia resiliente que já concluiu a sua terceira década de funcionamento, como disse o ministro da Economia, Paulo Guedes. O que se viveu foi um acontecimento transcendente para o país e potencialmente para cada um de seus habitantes. Bolsonaro e boa parte de seus ministros, portanto, não administram expectativas. Inflam-nas ao grau máximo.
A fala de Paulo Guedes sugere um contraste. Mas é só na aparência. Guedes não fala para os eleitores de Bolsonaro ‘lato sensu’, ele fala para um público que constrói suas expectativas de outra maneira e que guarda um certo desprezo do ultraconservadorismo na questão dos costumes.
O superministro da Economia começou a sua peroração repartindo responsabilidades com os três Poderes e com a própria imprensa. Não atacou os marxistas. Atacou os piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político.
Ele partiu de uma premissa que é um artigo de fé: a de que a maior engrenagem descoberta pela humanidade para garantir a inclusão social é a economia de mercado. Estabeleceu a sua prioridade imediata, o controle de gastos, e afirmou que para concretizá-la acelerará reformas estruturantes e as privatizações. Isto posto, acenou com um ciclo de crescimento sustentável de dez anos e tratou de animar a sua plateia: “Podemos contar com um futuro brilhante” e “o Brasil deixará de ser o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores” foram algumas de suas afirmações.
Guedes mencionou um plano A, o da reforma da Previdência, e um plano B, o da desindexação e desvinculação absoluta, o que no limite libera o governo até mesmo de pagar os aposentados de hoje, sem ter que correr o risco de um impeachment. Guedes não mencionou a existência de algum plano C, caso simplesmente não se estabeleça um cenário de cooperação com o Poder Legislativo. O ministro, aparentemente, desconsidera o cenário de não obter simplesmente nada. A alta do Ibovespa para um nível acima de 90 mil pontos anteontem mostra que o mercado comprou o otimismo de Guedes. Está contratada a ideia de que, se der errado, pode dar certo.
Estamos no pico da euforia, no zênite da efervescência, em que tudo parece possível, em que a solução de problemas de décadas ou de séculos parecem ao alcance da mão. Não sabemos de que cor é o medo.