Eloísa Machado de Almeida / Folha de S. Paulo
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, que suspendeu o uso do Telegram em todo território nacional, suscita muitas questões jurídicas interessantes, mas tem em seu contexto sua melhor explicação.
A medida foi revogada neste domingo (20), após o aplicativo cumprir determinações feitas pelo ministro.
Juridicamente, a decisão dialoga com o Marco Civil da Internet e os limites previstos na lei para operação de provedores e aplicações de internet. O pano de fundo é a ponderação legislativa já feita entre liberdade de expressão e responsabilidade pelo que é dito.
Na lei, o descumprimento de seus termos e de decisões judiciais pode gerar a suspensão dos serviços, mesmo que afete milhares de usuários.
Mas, para isso, o Marco Civil da Internet traz em suas disposições a ideia de proporcionalidade, isto é, uma correlação entre a gravidade dos atos e das sanções correspondentes. Há inclusive, uma ação que está em trâmite no próprio STF que questiona tais dispositivos, mas, até o momento, não há decisão.
Pelos parâmetros legais vigentes, a decisão de Moraes precisaria ser analisada, no âmbito do processo em que foi exarada, pela gradação adotada entre atos da empresa e a sanção aplicada.
Na decisão, o ministro Alexandre de Moraes ressalta as inúmeras vezes nas quais determinações judiciais previamente adotadas foram parcialmente descumpridas ou simplesmente ignoradas.
Há, com isso, um esforço para se comprovar a proporcionalidade da suspensão do Telegram diante do descumprimento de determinações judiciais menos gravosas.
Após a decisão de Moraes, o responsável pelo Telegram emitiu declaração dizendo não ter recebido as ordens judiciais e prometendo colaboração com a justiça brasileira.
O tema dialoga, também, com os esforços que os Estados têm feito para conter graves violações a direitos humanos e fundamentais perpetradas por grandes conglomerados empresariais e multinacionais.
Aliás, os esforços para pensar em formas de adequar as práticas das empresas para com os direitos humanos e promover a devida responsabilização têm sido uma agenda internacional e preocupação central dos organismos multilaterais.
Porém há uma forma de analisar a decisão de Moraes que extrapola a regulação proposta pelo Marco Civil da Internet e o tema do poder de grandes empresas, relacionando-se com a conjuntura política brasileira.
A decisão foi adotada a partir de pedido feito pela Polícia Federal para que fossem suspensas as aplicações do Telegram após reiterados descumprimentos de decisões que demandavam o bloqueio de perfis de Allan dos Santos e da monetização dos mesmos.
O pedido se insere no âmbito de vários inquéritos em tramitação no Supremo que apuram atos antidemocráticos e disseminação de fake news contra instituições e no âmbito das eleições.
Tais inquéritos lidam com uma Presidência da República que abertamente se posiciona contra a integridade das eleições e que já afirmou, por mais de uma vez, que não respeitará o seu resultado.
Para tornar o cenário mais complexo, as Forças Armadas ora se posicionam como fiadoras do processo eleitoral ora como vertente política pleiteando espaço ora como garantes da ordem pública.
O tema não está em pauta apenas no Supremo. No Tribunal Superior Eleitoral, em outubro de 2021, ao julgar representações contra Jair Bolsonaro, o TSE absolveu o presidente.
Mas o tribunal decidiu que “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas visando promover disparos em massa contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social, nos termos do artigo 22 da LC 64/1990 (Lei de Inelegibilidade), a depender da efetiva gravidade da conduta, que será examinada em cada caso concreto”.
Uma “decisão para o futuro”, para as próximas eleições, disse o ministro Luís Roberto Barroso.
O principal contexto da decisão de Moraes sobre Telegram, sem ignorar a importância sobre o debate de liberdade de expressão e liberdade de usuários ou sobre a responsabilidade de grandes empresas na violação de direitos, está nos esforços adotados pelo STF e pelo TSE para conter movimentos antidemocráticos que, inclusive, têm encontrado guarida na Presidência da República.
A decisão de Moraes —assim como a decisão do TSE– insere-se em um cenário onde o que está em avaliação é a capacidade do sistema de Justiça nacional fazer cumprir a lei —e em ano eleitoral, o que está em jogo é a continuidade de nosso projeto democrático constitucional.
*Eloísa Machado de Almeida é advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e professora da FGV Direito SP
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/bloqueio-do-telegram-mira-ameaca-a-eleicoes-e-extrapola-regulacao-da-internet.shtml