Para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio
Donald Trump foi internado com Covid-19. Ao que parece, ao menos nesse round, sua briga com os fatos terminou com vitória dos fatos. Trump está internado com uma doença cuja gravidade negou, e não está sendo tratado com o protocolo que seus puxa-sacos recomendaram para o grande público ao redor do mundo.
Tudo isso pode virar. Se tiver a forma leve da doença, Trump pode dizer, como Bolsonaro, que tinha razão em negar sua gravidade. Se ficar incapacitado ou morrer, seus adeptos podem radicalizar na teoria da conspiração e questionar a legitimidade da vitória de Biden, que já parecia bastante provável antes da internação.
Alguns analistas notaram a similaridade entre a internação de Trump e a facada em Bolsonaro em 2018. As primeiras pesquisas não indicam uma onda de simpatia por Trump, mas também foi assim em 2018 no Brasil. E Bolsonaro foi, sim, beneficiado por não precisar se expor na campanha, deixando que um país desesperado com a política projetasse nele o que queria ver.
Mas não é claro que as mesmas condições vão valer para Trump. O republicano está concorrendo à reeleição, de modo que não se trata mais de ninguém projetando nada sobre ele. Todo mundo já sabe o que Trump é. Além disso, em 2018 Bolsonaro já liderava as pesquisas quando sofreu o atentado. Trump está razoavelmente atrás de Biden.
É mais um elemento de incerteza em uma eleição americana que já se anunciava explosiva. Se a sucessão de Trump se converter em crise política, pode haver consequências especialmente graves para o Brasil.
Vários e bons analistas já escreveram sobre os efeitos que uma vitória de Biden teria sobre o bolsonarismo. Mesmo se Biden não jogar contra Bolsonaro, certamente não jogará a favor, e nosso isolamento diplomático deve atingir níveis inéditos.
Mas há um outro cenário possível que recebeu menos atenção: uma vitória de Trump com corrosão institucional. Se Trump for eleito dentro das regras, as coisas devem continuar como estão.
Mas se vencer no tapetão, porque não aceitou a derrota, porque pediu recontagem, porque sua indicada para a Suprema Corte ajudou a anular votos por correspondência, ou porque a milícia Proud Boys espalhou terror pelas ruas, o radicalismo bolsonarista vai se sentir encorajado pela radicalização americana.
Afinal, os Proud Boys são a versão gringa da “turma do artigo 142” que Bolsonaro tentou beneficiar com a liberalização da importação de armas.
Isso poderia, inclusive, frustrar o esforço de acomodação de Bolsonaro dentro do sistema político brasileiro. Esse acordão vem forte faz alguns meses, e teve uma grande vitória com a indicação de Kassio Nunes para o STF.
Se Amy Barrett, a juíza conservadora recentemente indicada por Trump para a Suprema Corte, já estiver no tribunal durante uma manobra para anular votos democratas, os radicais brasileiros perguntarão: Kassio Nunes teria coragem de anular os votos do PT?
De qualquer forma, para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio, sem chance de virar no tapetão.
Se Trump tentar melar o jogo e isso contaminar a política brasileira, não será a primeira vez que a direita americana incentivará golpes na América Latina, mas será a primeira vez que o fará pelo exemplo.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).