Um clima de conflito generalizado pode favorecer o projeto autoritário do presidente
Desde janeiro de 2019, estabeleceu-se uma divisão do trabalho entre o governo Bolsonaro e a maioria de centro-direita no Congresso.
Do seu lado, o Congresso governa por Bolsonaro: faz reforma da Previdência, marco do saneamento, auxílio emergencial (com ajuda da esquerda). Do outro lado, Bolsonaro tenta fechar o Congresso.
Veja bem, eu não disse que era um relacionamento saudável.
Esse arranjo deve entrar em crise agora que as eleições de 2020 deram esperança de vitória presidencial para a centro-direita. Em todos os casos anteriores, Bolsonaro colheu os frutos de popularidade e/ou apoio das elites gerados pelo trabalho do Congresso.
Se a centro-direita tiver seu próprio candidato em 2022, não é provável que continue governando por Bolsonaro.
Mas abandonar Bolsonaro à maldição bíblica de ter que ganhar o pão com o suor do próprio rosto também pode ter custos. Ano que vem a crise vai ser feia. Isso pode mudar o humor do eleitorado, no momento favorável a candidatos moderados.
Em janeiro o auxílio emergencial acaba. Daí em diante, as projeções são muito ruins.
A renda dos pobres vai cair muito, a desigualdade deve disparar, o desemprego deve aumentar, e aquele efeito multiplicador do auxílio —mais gente consumindo porque tem mais gente com dinheiro na mão— vai se reverter.
O custo do auxílio foi alto: a situação fiscal é muito ruim.
Por incompetência de Bolsonaro, e só por isso, o Brasil será vacinado por último. Não há qualquer iniciativa do governo em curso para lidar com nada disso.
Se os piores cenários projetados para 2021 se confirmarem, o eleitorado pode sair do estado de espírito zen, moderado, centrista, “quero-um-gestor” da eleição de 2020.
Uma grave crise social pode acirrar de novo a disputa política. Talvez isso favoreça a esquerda, que é mais combativa contra Bolsonaro.
Talvez um clima de conflito generalizado favoreça o projeto autoritário de Bolsonaro, que nunca deixou de ser seu plano A.
De qualquer forma, no pior cenário para 2021, o centro pode deixar de ser o melhor canal para exprimir o sentimento popular.
Ou seja, se o centro continuar trabalhando para Bolsonaro, arrisca fortalecer o presidente contra um candidato centrista em 2022.
Mas, se parar de trabalhar para Bolsonaro, a crise pode ser grave o suficiente para virar o humor centrista do eleitorado.
Vejam o caso da reforma tributária. Há uma proposta de reforma no Congresso, baseada nas ideias do economista Bernard Appy, que conta com base de apoio bastante razoável.
Todos os principais candidatos a presidente em 2018, à exceção de Bolsonaro, sinalizaram que a teriam implementado.
Mas as notícias são de que Bolsonaro sabota a tributária para enfraquecer Maia (uma espécie de Cunha reverso).
Guedes quer a idiotice da CPMF. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, reclamou que o aumento de impostos sobre ricos seria “socialismo”. Ou seja, se deixar na mão dessa turma, a reforma não sai.
A centro-direita no Congresso deve tocar a reforma por sua própria conta, sabendo que eventuais frutos eleitorais do crescimento econômico serão colhidos por Bolsonaro? Ou deve abandonar a tributária, arriscando uma crise econômica mais grave e a volta da polarização?
Não vai ser fácil ser o adulto responsável pelo Jair e o rival do Jair ao mesmo tempo.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).