Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo
O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.
No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.
A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.
Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.
San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.
Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.
Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.
O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.
Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil – entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) – é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.
Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.
* Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)