Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais
Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.
Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.
O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.
O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.
Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.
São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.
O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.
A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente.
Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais.
A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro.
O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente.
Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição.
Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP; foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)