Defesa ambiental é um princípio imperativo que não pode ser ignorado num Estado Democrático de Direito
O século 20 foi um século de rupturas. Caracterizou-se pelo ineditismo da transposição de barreiras antes tidas como usuais. Nessa linha, a partir da década de 1970 foi ficando evidente que a natureza deixou de ser um dado da permanência da ordem cósmica e passou a ter o componente de um construído/destruído pela ação humana.
Hoje é inequívoca a vulnerabilidade da natureza por obra da atuação dos seres humanos. Ela deixou de ser concebida como um horizonte quase infinito, aberto à exploração humana. Tornou-se um horizonte de vulnerabilidade, comprometedora da rede global dos ecossistemas que sustentam a vida na Terra.
Responsabilidade provém do verbo latino respondere, responder. No campo jurídico, o termo foi sendo elaborado como resposta do Direito a fatos e situações provenientes de desordens e injustiças causadoras de dano. No caso das situações oriundas da vulnerabilidade da natureza, o assumir de responsabilidades políticas e jurídicas coloca o problema não só do dano causado no passado e no presente, mas também do dano no presente que se projeta no futuro.
O novo contexto passou a exigir novos conceitos. O aprofundamento crescente do conhecimento científico permitiu desvendar os riscos para o meio ambiente. Ampliou-se o escopo operativo da gestão de riscos necessária para analisar o impacto ambiental da ação humana. Daí novos conceitos como o princípio da precaução. Ciência e conhecimento se tornaram fonte material das normas do direito ambiental.
A dinâmica das mudanças econômicas, políticas e intelectuais adensadas no século 20 tornou o mundo finito e interdependente. Aprofundou a porosidade das fronteiras, particularmente relevante em matéria ambiental, pois se a maioria dos ecossistemas se situa em territórios nacionais, o impacto do seu uso tem efeitos transfronteiras. Basta pensar nas múltiplas dimensões da mudança climática. Isso faz do meio ambiente um tema global.
A Conferência da ONU de 1972 em Estocolmo foi a primeira tomada de consciência no plano diplomático mundial da vulnerabilidade da natureza. Abriu caminho para a inserção do meio ambiente na agenda internacional. Identificou o potencial de preocupações compartilháveis, desvendadas pelo conhecimento gerado de maneira crescente pela ciência. Enfrentou as dificuldades de encontrar conceitos e meios para operacionalizá-las num mundo estratificado pela polaridade Norte-Sul, como a de compatibilizar as legítimas aspirações ao desenvolvimento e à preservação do meio ambiente.
O caminho para equacionar essa dificuldade foi a “ideia a realizar” do desenvolvimento sustentável. O conceito, que é heurístico, proposto pelo Relatório Bruntland, de 1987, contribuiu para a vis directiva da Conferência da ONU no Rio de Janeiro, em 1992, na qual foi consagrado. Sob a égide da Declaração da Rio-92, adquiriu notável irradiação, que permeia o contemporâneo direito do meio ambiente na interpenetração do interno e do internacional.
O paradigma de desenvolvimento sustentável trouxe profunda mudança no entendimento do como lidar com o inter-relacionamento de atividades econômicas, sociais e meio ambiente. Este não é uma “externalidade”. Daí o imperativo da “internalização” da avaliação dos custos da sustentabilidade ambiental – que tem efeitos erga omnes em função da vulnerabilidade da natureza – nos processos decisórios públicos e privados, locais, nacionais e internacionais. O desenvolvimento sustentável contrapõe-se a padrões insustentáveis de produção e consumo, como o desmatamento predatório. Alcança a mudança da lógica das matrizes energéticas. Vem levando à busca da economia de baixo carbono e à generalizada validade de padrões de ecoeficiência, exigíveis na certificação da atuação de empresas. É critério de atração de investimentos.
O desenvolvimento sustentável aponta para a responsabilidade coletiva – global, nacional e local – consolidar os seus pilares mutuamente interdependentes e, nesse âmbito, os imperativos solidários de cooperação internacional. Dá realce à obrigação das normas nacionais e internacionais de tutelar o escopo da responsabilidade jurídica por dano ambiental, incluída a que provém do seu impacto transfronteiras. Destaca o direito de acesso adequado às informações relevantes ao meio ambiente, que é hoje um componente de transparência democrática do poder.
O desenvolvimento sustentável não é uma preferência entre outras preferências, como as do “achismo irresponsável” e da cobiça sem freios. Possui a força legitimadora da tutela do direito à vida das gerações presentes e futuras, como estipula o artigo 225 da Constituição federal. É uma obrigação de todos. Por isso a Constituição, ao listar os princípios gerais da atividade econômica em nosso país, estabelece no artigo 170, VI, a defesa do meio ambiente. É um princípio imperativo de alcance geral, que não pode ser ignorado e desconsiderado num Estado Democrático de Direito.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)