Carta aberta aos democratas e humanistas

Ivan Alves Filho, historiador

Em outros tempos, o Céu estava tão próximo da Terra que bastaria estender a mão para colher um pedaço do Firmamento e se alimentar com ele”.

                                                                              (De uma lenda mursi, da África Negra)

É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.

                                                                                                                  (José Saramago)

I

Tenho para mim que o Brasil precisa urgentemente de um projeto de nação, de uma opção democrática ao que vem se desenrolando sob os nossos olhos desde a redemocratização, em 1985, e que acabou nos frustrando em alguma medida.  Sair do fim do túnel, antes que seja tarde demais. Eis o que implica, a meu ver, trilhar por um espaço de convergência. Este foi o campo encarnado pela chapa JK – Jango em 1955, que um militar legalista como o marechal Teixeira Lott defendeu com coragem exemplar. E também foi o campo das Reformas de Base e do ministro San Tiago Dantas no início da década de 60. Ou ainda de Tancredo Neves e seu Colégio Eleitoral, de Itamar Franco e seu Plano Real e, também, de Eduardo Campos, morto tão prematuramente. 

Ou seja, chegou o momento de superar esta polarização que assola o país. Não existe autoritarismo de direita ou autoritarismo de esquerda. O que existe é autoritarismo. Não existe corrupção de direita ou corrupção de esquerda. O que existe é corrupção. E a corrupção está para a economia como a tortura para a política: ela mata, tenho reiterado isso. A linha de demarcação política se dá entre Civilização e Barbárie. 

Dos enormes desafios que o Campo Democrático tem pela frente – os quais passam tanto pela compreensão de que um novo mundo do trabalho vem se formando diante de nós quanto pela ampliação das lutas pela cidadania, sem esquecer dos compromissos a assumir com a defesa do meio ambiente –, a incorporação definitiva da Democracia ao ideário progressista talvez seja o de maior complexidade. 

A prática tem demonstrado que alguns setores são mais democráticos no plano político; outros, no terreno social e econômico. Mas há um chão democrático comum, o chão do Humanismo também, integrado pela defesa da Ética, da Justiça Social e pela formação de uma ampla frente política. Não faz o menor sentido manter um corte entre Justiça Social e Democracia. A luta é longa e só pode ser conduzida de forma consensual. Em tempo: por Humanismo eu entendo uma sociedade não fraturada, sem exploração, alienação e opressão de nenhum tipo. Somente assim o homem se reencontra ou se reconcilia com ele mesmo. Ou seja, defendendo os valores da Civilização contra a Barbárie, justamente.  

Retomo aqui uma linha de raciocínio que venho trilhando há tempos. O papel das forças democráticas ou do Campo Democrático implica a defesa intransigente dos interesses da população, o que significa o reconhecimento sem arestas das instituições da República. Um país não se compõe apenas de bandeira e hino. Tem povo dentro dele. A redução da política à lógica do chamado “nós contra eles” conduz a considerar os atores sociais como inimigos e não adversários. Nunca é demais lembrar que o próprio da atividade política é a negociação: a destruição ou a eliminação do outro pertence ao raciocínio e ao domínio dos marginais. 

O nosso país só avançou também pela via negociada, por intermédio da política. Entre a revolução – pondo abaixo o aparelho de Estado  – e a conciliação – que faz tábua rasa das transformações sociais –, podemos verificar a existência de uma saída que passa pelo acordo político. Aí está a nossa História para comprovar isso, em seus grandes momentos: a Independência negociada, a Abolição pactuada, a transição para a Democracia em 1985. Isso não significa que não houve lutas. Elas foram muitas, inclusive armadas. Significa apenas que aconteceu uma convergência para uma via negociada. As lutas todas convergiram para este caminho. Daí a negociação. Nem o Estado pode frear as mudanças, ou teve forças suficientes para isso, nem a sociedade conseguiu mudar tudo de chofre, o que tampouco é muito comum na História dos países em geral. Não há tantas revoluções francesa ou russa assim pelo mundo. O Brasil avança desta forma, esta a especificidade nacional brasileira, a meu ver. Resumindo, a nossa via de transformação social desemboca na negociação. “Negociar para mudar”, escreveu certa vez o extraordinário estrategista político Giocondo Dias. 

II

A mediocridade e a perversidade podem ser significativas e andar de mãos dadas. Já vivemos esse drama durante a ascensão do fascismo na Europa. Durante muitos anos, deixamos, entre nós também, que aventureiros e demais integrantes de toda uma escória, à maneira das hordas fascistas, posassem de defensores do povo. Muitas vezes eles não representam coisa alguma, a não ser eles mesmos. Adolf Hitler empalmou o poder na Alemanha com base, em boa medida, no chamado lumpesinato ou nos setores marginalizados da população. Fez a ponte entre o capital monopolista em formação e a escória social. A mistura de crise econômica com insegurança pública, com a consequente expansão do crime organizado, é totalmente explosiva e pode resultar, como na própria Alemanha nazista, na tomada do poder pelos representantes da barbárie. Organizações criminosas começam a empalmar, outra vez, o Estado. Há uma espécie de burguesia do crime entre nós. O exemplo do Haiti de hoje é altamente representativo dessa tendência, assim como o do Equador. No Brasil, os assassinatos representam quatro vezes a média mundial. Na Jamaica, dez vezes mais. É terrível isso. Parece não haver fundo do poço. Um dos sintomas mais agudos do desmoronamento presente em uma parte da sociedade é dado pelo avanço da irracionalidade, um dos traços principais, senão o principal, do próprio nazi-fascismo. E há sérios riscos de avanços de uma espécie de Estado Teocrático no mundo. Ainda no exterior, figuras como Marine Le Pen, Viktor Orbán, Nicolás Maduro, Donald Trump, os fundamentalistas do Irã e do Afeganistão e afins apostam na construção de uma espécie de novo Eixo no mundo, tendo a Democracia como inimiga mortal.

Temos que entender que a Democracia é uma totalidade, possuindo ao mesmo tempo uma dimensão social, econômica, política, ambiental, cultural e educacional. Daí não podermos nos limitar mais à defesa da Democracia institucional. Evidentemente, esta defesa continua sendo fundamental, mas, a rigor, é preciso ir além dela. Ou seja, a ideia da Frente Ampla, formulada na batalha contra o fascismo, precisa ser aplicada ou estendida agora a todos os setores da vida. E não só: a Democracia é uma conquista da Humanidade, do processo civilizatório. Um patrimônio de todos. Neste sentido, ela não pertence a uma classe determinada ou sequer a uma determinada região. Se eu assimilei algo de minhas conversas com Armênio Guedes durante décadas de convívio com ele, foi isso. O próprio liberalismo surgiu na Inglaterra do século XVII, bem antes da formação da burguesia. Sua função era afirmar o indivíduo diante dos desmandos do Estado absolutista. 

E é necessário compreender, de uma vez por todas, que a contradição não se dá entre Estado e Mercado e, isto sim, entre capital e interesse social. E que a socialização tem que se dar pela própria sociedade e não pelo Estado forçosamente. Essas são correções inevitáveis, alterando certos rumos.

Há a propriedade formal e a propriedade informal. No papel, uma empresa pode ser estatizada, mas não necessariamente pública: o caráter público é dado pela gestão da empresa, que precisa ser transparente para dizer o mínimo. Uma estatal quase sempre é uma propriedade coletiva dos capitalistas. Ainda mais na fase do Capitalismo Monopolista de Estado. Na outra ponta, uma empresa privada ou uma entidade privada pode perfeitamente ter uma função pública e este é o caso de inúmeras ONGs. E uma determinada empresa estatal pode sofrer o pior tipo de privatização que existe, qual seja, a gestão fraudulenta ou corrupta por parte de um partido político; um órgão privado, por sinal. Nem estatal é sinônimo de público, nem privado é sinônimo de capitalismo. As burocracias partidárias defendem muitas vezes uma estatal não por serem públicas exatamente, mas por se revelarem passíveis de um controle político-administrativo quase absoluto, abrindo as comportas da corrupção. Basta pensar no loteamento de cargos. Em outros termos: há uma via jurídica para o acesso à propriedade como também há uma via política. E isso explica muita coisa. Mais: o mercado é um dado da economia. Somente quando o capital de fato o domina é que estamos diante de uma realidade capitalista. Havia mercado na Grécia antiga, mas não havia capitalismo. Eu conversava muito com o saudoso Milton Coelho da Graça a respeito disso e com ele aprendi lições valiosas. Uma delas? A economia é para o Homem. 

O trabalho por conta própria, o empreendedorismo social e as cooperativas de trabalhadores abrem novos espaços, ditando aspectos diferenciados para a atividade econômica. Afinal, a esmagadora maioria da população vive do suor de seu rosto. Marx chegou a escrever que a luta dos trabalhadores tinha por objetivo restabelecer “a propriedade individual fundada sobre as conquistas mesmo da era capitalista”, vendo assim o trabalhador como um detentor pessoal das suas condições de trabalho. Não havia outra forma de quem trabalha se tornar dono dos frutos gerados por sua atividade.

III

Não há mais muito tempo a perder. Urge organizar um novo projeto político e um novo operador político. Aprendi isso com uma dessas figuras extraordinárias que tive a honra de conhecer no decorrer da vida, o camponês Hilário Pinha, líder da revolta de Porecatu, no Paraná, no final da década de 40 do século passado. Agrupamentos políticos do Campo Democrático, associações sindicais e de classe profissional, componentes dos setores artísticos e da intelectualidade, grupos de ambientalistas, defensores da cidadania, dos direitos da mulher e das minorias, associações de artesãos, além de fazedores de cultura em geral, decididamente a lista é tão longa e diversa quanto a própria sociedade, eu diria até. 

Precisamos, em meio a essa crise sem precedentes dos nossos ideais de Justiça Social e de Democracia, agarrar a realidade pelos cabelos e recuperar os laços que ainda nos ligam à cultura libertária. Não estamos mais na fase da organização da indústria sob bases mais artesanais, dando origem ao movimento anarquista, sua expressão política. Como tampouco estamos mais na época do chamado chão da fábrica, do trabalho fabril tradicional, dando origem aos movimentos capitaneados pelas  II e III internacionais de trabalhadores, respectivamente social-democrata e comunista, suas expressões políticas também. Hoje, estamos diante de um processo de outro tipo, com a entrada em cena da automação, da robótica e da inteligência artificial. Que política armar a partir daí é o x da questão. Esse é o ponto de partida. Vamos concentrar esforços nisso. Como o Estado já não emprega como antes e a indústria passa por um processo de automação cada vez mais acentuado (no momento, para que se tenha uma ideia, apenas 10% do parque industrial recorre à inteligência artificial), os trabalhadores tendem a investir nas atividades por conta própria, até como forma de atravessar este período de mudanças. A sobrevivência está na ordem do dia. Eis o que angustia as pessoas. Quem reduzir isso a uma simples vontade de empreender, em função de um espírito capitalista que se apossou repentinamente dos trabalhadores, vai se isolar totalmente das massas.  A ideologia tem pouco que ver com isso: trata-se de luta pelo pão de cada dia; cada vez mais complicada. Não podemos deixar mais esta bandeira nas mãos dos oportunistas. Neste sentido, seria interessante examinarmos a experiência de microcrédito de Muhammad Yunus, de Bangladesh. No Brasil, um dos poucos homens públicos a chamar a atenção para isso foi Cristovam Buarque. O afastamento de muitos setores ditos progressistas da realidade popular impede por vezes a compreensão disso. Hoje é mais comum um filiado a um partido político do campo progressista se aboletar em um gabinete parlamentar qualquer do que participar de algum movimento social. O próprio marxismo, antes vigoroso no interior de alguns partidos, com formulação própria, hoje se refugiou quase por completo na Universidade. Vigora nesses nossos ásperos tempos um marxismo de cátedra, desvinculado da prática. Ocorre que o que é próprio da práxis marxista é justamente a união entre teoria e prática. Só assim o pensamento avança de fato. 

Coerência não é mesmice, já observava Ferreira Gullar. Na época de Karl Marx e Friedrich Engels não existia a Linguística, a Psicanálise, a Antropologia, a Ecologia, a Cibernética e a Arqueologia, assim como a Psicologia ainda engatinhava. De lá para cá, a árvore do conhecimento cresceu e muito. O mundo hoje é outro. Algumas questões permanecem, outras não. E surgiram novos problemas. Se considerarmos que as ideias de Karl Marx e Friedrich Engels estão ligadas às lutas de classe, é necessário ter em conta também que elas desaparecerão com o próprio desaparecimento das classes sociais. Neste sentido, suas ideias compõem o formidável acervo do Humanismo contemporâneo, uma vez que visam a repor a totalidade social e, por extensão, a integridade do próprio Homem. 

IV

Se a primeira Revolução Industrial, a que teve início na Inglaterra em 1780, criou as bases técnicas para a superação do modo de produção escravista ao transferir uma parte da capacidade muscular do homem para a máquina, esta última revolução, iniciada na virada do século XX para o atual, ao transferir uma parte da capacidade intelectual do homem para as máquinas, lança as bases técnicas para a superação, por seu turno, do modo de produção das mercadorias. No século XXI, alguns reagem às mutações industriais como outros reagiram àquelas presentes na passagem do século XVIII para o século XIX. Ambos revelaram-se reacionários, historicamente falando. A impressão que dá é que alguns setores (curiosamente lotados na intelectualidade, digamos assim) se comportam diante da revolução tecnológica em curso como outrora os ludistas na Inglaterra, que quebravam as máquinas nas fábricas, em reação à Revolução Industrial.

No passado – se formos nos ater ao período da Revolução Russa de 1917, por exemplo – havia as condições políticas para as mudanças, mas não existiam as condições técnicas, materiais. O próprio Vladimir Lenin reconheceu esse fato, às vésperas da tomada do poder, ou seja, na noite do dia 6 para o dia 7 de novembro. Mesmo nos anos subsequentes à Revolução, o idioma de trânsito ou oficial da III Internacional era o alemão e não o russo, uma vez que os bolcheviques aguardavam a expansão da Revolução em direção ao Ocidente. Isso acabou não acontecendo devido às particularidades da luta no campo ocidental, diferentes daquelas do campo oriental, predominando neste último um Estado forte e uma sociedade civil pouco desenvolvida. No chamado Ocidente era justamente o contrário: havia um Estado não tão dominante e uma sociedade civil mais atuante do que no Oriente. As duas vias, a “oriental” e a “ocidental” se chocaram. De toda maneira, a situação hoje se inverteu, em relação à Revolução de 1917 na Rússia: isto é, temos agora as condições técnicas, a base material, mas perdemos momentaneamente as condições políticas para as transformações sociais. Existe um choque incontornável, uma contradição indissolúvel, entre o capital constante (maquinário, instalações, o chamado trabalho morto) e o capital variável (grosso modo: o trabalho humano vivo, assalariado). Extrair mais-valia de um robô é um pouco difícil. O capitalismo criou uma base material que não é aplicada a ele. A automação é a base material da sociedade sem classes, tornando tecnicamente desnecessária a exploração do homem pelo homem. O modo de produção capitalista não pode ir até o fim da lógica da automação por ela ser incompatível com a extração da mais-valia. Afinal, sem salário não há capital. E como é impossível frear o desenvolvimento das forças produtivas, eis o impasse formado. Ele só será resolvido pela intervenção política. 

Sob esta ótica, urge adequar o rumo da Economia àquele do Projeto Político. Tudo indica que haverá um atrito entre as forças produtivas, que não recuam historicamente, e as forças reprodutivas, isto é, o número de pessoas formado no bojo da Revolução Industrial anterior, conforme os indicadores demográficos que possuímos. Esta é outra dificuldade, e não das menores, que temos de encarar. É provável que tenhamos que controlar ao menos o ritmo da entrada em cena das inovações tecnológicas.

V

Cabe a nós, humanistas contemporâneos, reinventar a Democracia, democratizando o seu sistema atual de representação. Pois toda Democracia, até os sovietes, repousa sobre um conjunto de representatividade, de delegação de poder. Até para melhor defendê-la das forças autoritárias e totalitárias, é preciso atualizá-la. Ao mesmo título, impõe-se rever a qualidade da República que temos no mundo: há verdadeiros clãs dinásticos travando a participação das pessoas, famílias inteiras dominando a política, e isso tanto nos países centrais quanto periféricos. É possível que Nikita Kruschev tenha sido apeado do poder na antiga União Soviética muito menos por sua crítica ao stalinismo (portanto correta) do que pelo fato de ter batalhado pela rotatividade do poder, limitando a representação política a dois mandatos. Essa era uma proposta da própria Comuna de Paris, já em 1871. Quando nos referimos à questão republicana, não estamos nos atendo apenas a ditaduras, já em número considerável no mundo e também submetidas a verdadeiras dinastias. Também nos países que se reivindicam da Democracia isso também ocorre. Assim, temos a família Gandhi na Índia, a família Ali Bhutto no Paquistão, os Kennedys e os Bush nos Estados Unidos, a família Le Pen na França, Papa Doc e Baby Doc no Haiti, os Battle no Uruguai, a família Frei no Chile, a família Pastrana na Colômbia, os Ortegas na Nicarágua, os Castros em Cuba, Peron e Kirchner na Argentina, a família de Kim-Il-Sung na Coreia do Norte, a família Tchan-Kai-Shek em Formosa, os Sukharnos na Indonésia, a família Fujimori no Peru. Há algo de podre também fora do Reino da Dinamarca.  

Não é muito difícil constatar a ambiguidade de certos setores se reivindicando do campo progressista quando recorrem à doutrina nacionalista, em período marcado pela globalização, para justificar seus equívocos e crimes. Não há como deixar de recordar aqui a frase do escritor inglês Samuel Johnson: “o nacionalismo é o último refúgio dos calhordas”. Proferida no século XVIII, ela parece manter toda sua atualidade. Já foi dito por um grande estrategista político do século XX: “não pintemos o nacionalismo de vermelho”. Pois uma coisa é o projeto de nação, outra a estreiteza nacional. Torna-se imperativo, por exemplo, inserir o Brasil e seu necessário projeto de nação no mundo globalizado que aí está. É possível uma globalização dos povos. Não estamos fadados a uma globalização do capital. Há contradições nesse processo todo. Quem só enxerga a dinâmica do capital no processo de globalização no fundo não crê em mudanças. Da parte de alguns, pode ser até uma boa desculpa para justificar o imobilismo e a impotência, quem sabe. 

Para algumas instâncias políticas ocorre, visivelmente, um atrito entre o plano nacional e a questão democrática. A História ensina; é transmissora de experiências. Vejamos o caso do governo populista de Getúlio Vargas. Ele subordina a Democracia a um propalado nacionalismo modernizador. Ocorre que a modernização desejada por ele se fazia em detrimento dos Direitos Humanos. Modernização com recurso sistemático a torturas e carta branca para a polícia política de Filinto Müller não dá. Astrojildo Pereira percebeu isso com acuidade à época, valorizando a Democracia entre nós desde os primórdios do movimento dos trabalhadores, nas primeiras décadas do século XX. 

O que era o Brasil antes do Brasil? Uma área do globo terrestre assentada economicamente em um modo de subsistência, com populações vivendo de forma relativamente descentralizada e sem contato com as demais áreas do mundo, praticamente, a não ser por levas migratórias esporádicas provenientes de partes da Ásia e, provavelmente, do Pacífico. Se formos examinar a formação do próprio Brasil, não é difícil constatar que somos fruto da chamada globalização: a cana-de-açúcar, originária da Índia, após um período de aclimatação na Ilha da Madeira, é transplantada para o Nordeste brasileiro, com força de trabalho africana, em processo comandado pelo capital comercial em expansão na Europa ocidental. Nas praças europeias, o açúcar resultante do beneficiamento da cana passaria a ser comercializado. O início da unificação dos continentes data, pelo menos, do século XVI. A leitura de um autor clássico da nossa historiografia, como Nelson Werneck Sodré, permite chegar a essa conclusão. A mudança foi tão radical por aqui que a implantação do modo de produção escravista, porque baseado na forma de existência social da força de trabalho escrava, implicou a própria alteração dos produtores, com a saída de cena dos índios. Mas essa saída não se deu por uma não aceitação da escravização por parte dos índios, o que equivaleria a dizer que os negros aceitaram essa escravização… As razões foram outras, naturalmente. Senão vejamos. O Brasil chega ao ano de 1600 como o maior produtor mundial de açúcar e atinge esse patamar com considerável força de trabalho dos índios, pelo menos até 1585/1590. De um lado, Angola possuía, basicamente, o mesmo tipo de solo que o massapê presente no Nordeste brasileiro. De outro, os portos angolanos estavam mais próximos de Lisboa do que os do Nordeste do Brasil. Além disso, a população já se encontrava lá. Então, qual o sentido de trazer os negros escravizados para o Brasil? Por uma razão: o capitalismo nasceu vendendo homens. E desta forma foi reinventada a escravidão em solo americano. E eram esses homens escravizados que produziam o açúcar, como depois extraíam o ouro e os diamantes e plantavam o algodão e o café. Sem a África e seus trabalhadores não existiria o Brasil tal qual o conhecemos hoje. 

VI

Retornando ao ponto de partida. Abandonamos a noção de “reformas de estrutura” e não levamos a Democracia aos terrenos social e econômico. Já está mais do que na hora de afastarmos do nosso caminho os aventureiros, aqueles que não possuem programa ou um mínimo de propostas sequer. Foi assim que o Brasil avançou nos momentos mais cruciais de sua História. 

O populismo, dito de “direita” ou de “esquerda” é sempre um atraso. É, por vezes, o fascismo que não ousa dizer o nome.

A partir dessa ótica, convém dizer ainda que política não se faz com cabeça étnica – ou seja, trata-se de evitar a racialização.  E a racialização foi o que Hitler propôs, ao defender a ideia da edificação da nação alemã sob bases raciais, fazendo da “diferença”, ou do arianismo, o seu cavalo de batalha. Uma coisa é combater o racismo e lutar por um lugar ao sol para as chamadas minorias; outra, bem distinta, colocar a raça no centro das questões sociais. Tudo é parte da luta, mas não há luta à parte. É preciso cautela, evitando a exacerbação disso, conforme se vê nos últimos anos no Brasil e em outras áreas do mundo. A universalidade da condição humana só tem a perder com um posicionamento desse tipo. Pior: a sociedade desaparece, o denominador comum desaparece, e passa a existir somente o indivíduo. O atrelamento da política ou da cultura à “pureza” genética tem endereço certo: nazismo, Ku Klux Klan, por aí. Isso para não aludir ao fato de a sociedade brasileira ser extraordinariamente mestiçada. 

Vamos ao que nos une e não ao que nos desune. O sonho não acabou, mas necessita de ajustes consideráveis. Como no passado, temos quadros competentes para recuperar o país. Ou ainda temos. A principal característica da cultura brasileira, desde pelo menos a Conjuração Mineira, tem sido seu poder de síntese. Entre o nacional e o internacional. O erudito e o popular. O conhecimento teórico e o engajamento. O entrelaçamento entre contribuições culturais de matizes diversas. E isso se reflete no universo dos nossos principais intelectuais, artistas, formuladores, articuladores, homens públicos e administradores em geral. Assim como se reflete nas lutas sociais memoráveis do nosso povo, como que consubstanciadas nas epopeias das Missões Guaranis, do Quilombo dos Palmares, da Conjuração Mineira. Sem esquecer jamais a Independência de 1822, as lutas pela Abolição, a Proclamação da República, a criação do Serviço de Proteção aos Índios, a fundação do Partido Comunista, a Coluna Prestes, a formação da Aliança Nacional Libertadora, a organização da Força Expedicionária Brasileira, a campanha do Petróleo é Nosso, a Campanha pela Legalidade, a Frente Ampla, o movimento das Diretas-Já e a Constituição Cidadã de 1988. A sociedade civil é sempre maior do que o Estado. Quem governava o Brasil à época de Sepé Tiaraju? Ou de Zumbi dos Palmares? Ou, ainda, de Tiradentes? De José do Patrocínio? Do Marechal Rondon? De Luiz Carlos Prestes? Provavelmente teremos alguma dificuldade em responder. Mas conhecemos todos esses heróis da luta pela nossa liberdade e transformação social. O povo sabe quem reter em sua memória. Apesar de ter ocupado um ministério durante a Independência, da qual foi o principal artífice, José Bonifácio, outro grande brasileiro, foi preso duas vezes e deportado do país, morrendo no isolamento em 1838. 

Finalizando agora. Ninguém tem o monopólio da verdade, da reflexão ou da honestidade política e/ou cultural. Seria muita pretensão. O mundo é plural, sempre. A Civilização é fruto da marcha comum da Humanidade, com o aporte das populações de todos os continentes. Não dá para imaginar a Europa sem o Cristianismo, religião gestada no Oriente Médio, ou as Américas sem a colonização moderna, que tanto impacto teve sobre a acumulação primitiva de capital. De fato, como pensar a civilização humana sem trocas de todo tipo? 

A Humanidade é composta por pessoas de boa vontade, que trabalham, estudam e lutam por seus direitos. No Brasil e no resto do mundo. Como dizia Oscar Niemeyer, precisamos nos dar as mãos. Esta é a minha convicção. Daí este apelo por um entendimento entre os humanistas e democratas, tendo por base as conquistas da própria Civilização, no que ela tem de melhor e de mais significativo: ou seja, a Justiça Social, a Ética e a Democracia. 

                                            Tiradentes/MG, setembro de 2024.

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