Cármen Lúcia / Folha de S. Paulo
“(…) e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”. Assim dona Hipólita Jacinta Teixeira de Melo dirigiu-se ao vigário da Comarca de Rio das Mortes dando notícia da prisão de Tiradentes.
Eram os idos de 1789. Maio. Dona Hipólita, informada, cuidou de avisar os participantes da “Inconfidência Mineira”. Atuara no movimento, sua casa em Ponta do Morro sendo local de encontros dos depois apelidados “inconfidentes”. Importante marco da história brasileira, são conhecidos os nomes dos seus participantes, sua trajetória, sua ação. As parcas referências às mulheres que participaram daquela conjuração registram, quase sempre, apenas as mencionadas como musas, cantadas em versos conhecidos. As inconfidentes mineiras ou outras figuras de ação no período, de dona Hipólita a Inácia Gertrudes de Almeida, permaneceram ausentes da história brasileira.
Afirma-se cega a justiça. Se fosse, sua imagem mesma seria inexplicável com a venda a acompanhar sua representação. Não se venda cego, mas aquele capaz de ver o que não se quer seja vislumbrado. À parte a história desta representação, o que vem à mente é se a história também tem sua cegueira de conveniência, ocultos à visão humana fatos ou passagens que marcam a trajetória das pessoas.
Nos sombrios da história e nos silêncios da justiça foram guardadas, quando não escondidas, as mulheres. Principalmente as mais pobres, as negras, as “bem-comportadas moças” e, mais ainda, as que não eram “tão boazinhas”. Mesmo alteando suas ações, dando voz a suas ideias e atuando altivamente, são mantidas silenciadas e invisibilizadas na importância política, cívica e social.
Assim é para se manter o modelo repetido de uma sociedade de não partilhamento ou compartilhamento do poder. Como se fosse ele apenas prerrogativa ou gozo, não responsabilidade e compromisso cívico. Versejado por Carlos Drummond de Andrade ao festejar Mietta Santiago, o direito mesmo de ser igual como eleitora, que causou estranheza e foi desigualdade vencida, faz agora 90 anos no Brasil. Por isso gracejava o poeta aos estranhamentos: “Mulher votando? Mulher, quem sabe, Chefe da Nação? O escândalo abala a Mantiqueira, faz tremerem os trilhos da Central e acende no Bairro dos Funcionários, melhor, na cidade inteira funcionária, a suspeita de que Minas endoidece, já endoideceu: o mundo acaba”.
Dona Hipólita segue como exemplo na “doidice” de um mundo no qual a igualdade humanizadora ainda é luta contra tantas cruéis formas de desigualdade.
Mas não há acasos na história da humanidade. O que há é a sua construção, os ideais que se impõem, os interesses que prevalecem, as formulações racionais ou não que se projetam e que contam, não raro, com o imponderável. Mesmo este há de ser superado para que a invenção humana tenha vez. Na aventura humana se pode ser protagonista ou figurante, atuante ou espectador. É escolha e trabalho, empenho e persistência.
A conquista de direitos é um “continuum” civilizatório. Para além da conquista de textos legais garantidores do respeito à igualdade é imprescindível também assegurar a efetividade dos direitos conquistados. As leis são necessárias; não são bastantes. A vida não começa nem termina em Constituições e leis. Inicia-se e segue, isso sim, na ideia de mulheres e de homens. Dela se passa às ações voltadas a finalidades legítimas apenas quando postas para realização do interesse de todos os viventes.
Da ação à transformação se tem o projeto e a concretização da criação humana, responsabilidade de todos, mulheres e homens.
Afinal, ainda seguindo o testemunho ativo de dona Hipólita, a mulher é capaz para as coisas, por isso há de nelas atuar. Ser parte e participar são deveres do ser humano nesta passagem tumultuada da história. Mulher não abdica de sua obrigação humana. Porque não quer ser sombra e esconderijo, senão também luz, a que se busca para o melhor projeto social de uma humanidade mais digna, ética e comprometida com todas as formas de vida.
*Ministra do Supremo Tribunal Federal, é professora titular de direito constitucional da PUC-MG
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/03/claros-sombras-e-mulheres.shtml