Decisões judiciais não congruentes com as nossas próprias ideologias e interesses também são legítimas
As pessoas, especialmente em ambientes polarizados, preferem valorizar argumentos que reforçam as suas crenças anteriores e não fatos objetivos. Elas tendem a se auto identificar a partir de atalhos políticos, ideológicos, religiosos etc. Uma espécie de trajetória cognitiva que facilita suas avaliações, mas que tende a ignorar fatos e informações, principalmente as que contrariam suas crenças com o objetivo de tornar suas escolhas mais fáceis, rápidas e congruentes.
Por exemplo, médicos americanos relataram em pesquisa que o recebimento de presentes da indústria farmacêutica geralmente seria errado. Mas quando eles mesmos enfrentaram diretamente essa situação, suas avaliações mudaram e eles passaram a enxergar essa atitude não tão errada assim, principalmente quando se lembraram do sacrifício que fizeram durante os vários anos de treinamento médico.
O mais interessante é que as pessoas tendem a desconsiderar fatos e informações sobre comportamento desonesto com mais frequência quando a pessoa que se comporta de forma desviante é ela mesma, em vez de outras pessoas distantes dela. Supostamente, é mais doloroso para as pessoas se verem desonestas do que aos outros. Como as pessoas usam estratégias de autoengano para proteger suas crenças e comportamentos, descontar informações desonestas funciona como analgésico, facilitando a atuação antiética.
A ideologia faz parte da própria identidade da pessoa de tal maneira que ela tende a se identificar com outras que compartilham a mesma preferência política. Porque as pessoas tendem a ver outras que compartilham da mesma ideologia como seu reflexo, aceitar um líder corrupto da mesma ideologia é algo muito doloroso, daí tenderem a usar suas posições ideológicas como lentes protetoras da sua consciência moral.
A ideologia, portanto, pode criar um estado de cegueira no qual as pessoas desconsideram as informações factuais quando não confirmam suas crenças anteriores. Por esse motivo, eles podem não considerar a má conduta do seu líder como errada o suficiente para reprová-la. Se o desvio não é visto como tão errado, as pessoas podem acreditar que não é um problema suficientemente forte para deixar de admirar e seguir esse líder.
Talvez não seja por coincidência que partidários e simpatizantes do ex-presidente Lula tenham comprado a sua justificativa de perseguição política para relevar sua condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, inicialmente imposta em primeira instância pelo então juiz Sérgio Moro, mas confirmada por colegiados de instâncias superiores, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que a execução da pena de um condenado pela justiça só pode ter início após o trânsito em julgado (e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau) veio a beneficiar várias personalidades investigadas pela Lava Jato, sendo o mais ilustre deles o ex-presidente Lula.
Essa decisão dividiu o País. Uma grande parcela da população a considerou ilegítima e com riscos de retrocessos à Operação Lava Jato e com potencial de inibir o combate à corrupção e à impunidade. Já para outros, em particular Lula e seus seguidores, a decisão do STF correspondeu a realização da mais pura justiça.
Ainda que tenha desagradado parte considerável da população, a decisão do STF foi legítima independentemente do placar e da direção tomada, já que obedeceu a regras e procedimentos vigentes.
Especificamente com relação ao ex-presidente Lula, seu apoio à decisão do STF que o beneficiou fecha o caminho para que o discurso de auto vitimização e de ilegitimidade das decisões que o condenaram venha a ser utilizado caso essa mesma Corte, no futuro próximo, decida contrariamente aos seus interesses. Afinal de contas, não é possível aceitar como legítimas apenas decisões judiciais que sejam congruentes com as nossas próprias ideologias.