O ‘novo’ na política patina em antigos problemas
A política brasileira quase nunca surpreende, e qualquer absurdo tem precedente. Ainda assim, mesmo quem acompanha sua dinâmica há tempos ficou perdido com os episódios do Senado, logo na abertura da atual legislatura. É dispensável repetir o que se passou e talvez impossível explicar o que ocorreu; no Brasil, a realidade bate, de longe, a ficção. Mas curiosas são as semelhanças entre aquela eleição e a da Presidência da República, ano passado –além das coincidências com o que ocorre pelo mundo.
Como o eleitor comum, os senadores votaram “contra”, não “a favor”; o gesto foi, antes, de desamor. Quando é assim, perdem-se rigor e critérios; faz-se opção emocional, pressionada por sentimentos e circunstâncias, sem pesar consequências.
As qualidades do escolhido deixam de ser importantes, desde que seja capaz de derrotar o mal maior — seja ele o PT ou Renan Calheiros. Os símbolos da tragédia passada precisam ser removidos e não há possibilidade de diálogo, menos ainda de conciliação.
Claro que erros do passado precisam ser cobrados. Mas há exageros, perdendo-se o sentido de complexidade sistêmica que envolve a crise. Culpa-se o status quo pelos males do mundo moderno, sem perceber o status perdido diante de ondas de comunicação e novos processos políticos derivados da transformação tecnológica. Como se fosse possível negar a realidade e a modernidade incômodas, demoniza-se o adversário e substituem-se “ideologias” –o termo voltou à moda– por outras ainda mais ultrapassadas.
São utopias regressivas, sobretudo, nos costumes; uma fuga para a nostalgia de um passado que retornará apenas como farsa. Um novo tipo de bonapartismo tende a piorar o que já era péssimo. Um otimismo forçado precisa ser sustentado, mas no íntimo suspeita-se que foi um tiro no pé.
Enfim, a despeito de qualquer alerta, a derrota do inimigo é mais comemorada que a vitória de quem ficará responsável pelo Executivo ou Legislativo –o Judiciário parece mais protegido, pelo menos por quanto tempo.
Do novo dirigente não importam o estofo cultural, o entendimento que tenha do mundo, sua biografia e conexões, nem a qualificação para o cargo; suas habilidades políticas mais amplas são ignoradas; não interessam.
Sem liderança, coordenação e condução políticas adequadas, a passagem para o que se imagina ser o futuro eleva muito mais os custos do que processos moderados de transição gradual e negociada — peremptoriamente descartada.
São períodos que geram impasses, o que ocorre agora em vários quadrantes do planeta, como atestam os resultados da Primavera Árabes, do brexit, no Reino Unido, ou da eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Não é um muro que se ergue, mas um beco que se forma. Lá estão tanto semelhanças quanto os fantasmas de consequências que parecem não tardar a surgir por aqui.
O fato é que uma massa disforme que representa a parte mais mobilizada e furiosa da opinião pública –sem representar toda a opinião pública– se arroga como “o povo”, num jacobinismo pueril que toma a frente do processo, sem assumir qualquer coordenação da ação coletiva. As lideranças não apenas são atropeladas, como se apequenam e desaparecem. Há pavor em se contrapor ao radicalismo confortável das redes sociais.
O resultado até aqui parece ser a destruição do passado e de seus personagens, como também da política. Não se abrem janelas para o futuro. E, depois de tudo, elas ainda estarão fechadas.
Com pretensos ares de renovação, o “novo” patina em antigos problemas, seja porque a suposta ruptura não traz novidade ou porque sobram inexperiência e inaptidão aos novos agentes.
E quase nunca há saída fácil para esses impasses a não ser purgar erros ao longo dos mandatos, torcendo para que instituições e o tecido social não se esgarcem completamente. Fica-se à espera de que no longo prazo essa destruição possa produzir algo de realmente criativo, antes que estejamos todos mortos de verdade.
*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper