Bolsonarismo já se movia para a ruptura em tempos de paz
Sob regência da mentalidade autoritária e crispado pelo espírito do tempo lavajatista, também autoritário, a que Sergio Moro dá materialidade, o Brasil está em depressão política profunda desde, pelo menos, 2013; doença de que Jair Bolsonaro, a ascensão da revolução reacionária bolsonarista, é a mais grave infecção.
Infecção, um projeto de poder autocrático, que se vale da linguagem totalitária, que enfraquece as imunidades do organismo institucional, que progride disparando estímulos musculares contraditórios, desequilibrantes, atrofiantes, que se espalha induzindo choques entre órgãos, que se implanta produzindo inimigos artificiais, pequenas e frequentes convulsões, transformando o sangue — as gentes daquele sistema — em elemento hostil ao corpo que lhe dá circulação, até que a engrenagem, corrompida pela exaustão, sucumba, submetida pelo vírus, submissa à doença.
O bolsonarismo é isso. Já se movia para a ruptura em tempos de paz. A pandemia apenas faz acelerar o processo destrutivo em que se enraíza seu projeto de poder. A Covid-19 é oportunidade; assim como se Bolsonaro, o núcleo difusor das pestes dentro da peste, instrumentalizasse a responsabilidade alheia para dar vazão a seu intento autocrático. A aposta em que seus arreganhos autoritários estarão protegidos— enquanto durar a pandemia — pelo receio ponderado de que a deflagração de processos contra si resultasse no trauma da ingovernabilidade em meio aos já tantos traumas da crise atual e àqueles derivados das crises dentro da crise forjadas pelo presidente.
Bolsonaro compreendeu que o estado de exceção ora mobilizado o blinda para que radicalize mais intensa e rapidamente. Identificando essa janela, explora o tempo que ganhou para cooptar os apoios que (crê) o defenderão adiante no Parlamento, intensificar o ritmo dos conflitos que promove e avançar sobre a institucionalidade de um Brasil anestesiado.
Está trocando de pele — aprofundando incertezas — em plena pandemia. Surpreendente seria que se comportasse como agente estabilizador. A peste é oportunidade — reforço. E ele adianta suas peças. Talvez finalmente inaugure, ainda antes de concluído o 16º mês desde que empossado, o verdadeiro governo Bolsonaro — um que deixaria o governo narrativo para trás, esse, engana-trouxa, que se sustentava em mitos inconciliáveis, os do lavajatismo e do guedismo, com a mitologia bolsonarista.
Então, em pouco mais de mês, a pandemia poderosamente entre nós, vimos o presidente debulhar a persona eleitoral precária que compusera para si. Já não há mais, pós-Mandetta, a fantasia do ministério técnico. Tampouco a do combate incondicional à corrupção; depois de escancarado o ímpeto bolsonarista por incorporar a Polícia Federal e ante o fato de o critério para a escolha dos que comandarão Ministério da Justiça e PF ser — aula magna de patrimonialismo — a condição de amigo da família.
Bolsonaro faz seu jogo. Deixa pelo caminho a pele meramente narrativa que o elegeu. Não o faz sem fundamento no calor das redes. A aposta é alta. Moro não é Mandetta. Tem base social sólida, fincada na classe média, o mesmo solo em que o próprio presidente firma seus pilares, entre os quais o da anticorrupção — uma coluna bolsonarista mais recente, de ocasião mesmo, sol para o qual o girassol publicitário que é Bolsonaro se orientou ao ler para onde ia a demanda jacobinista da sociedade. É esse o pilar que o presidente abala ao abrir mão de Robespierre. Repito: não o faz sem cálculo; sem indicativos de que possa equilibrar o prejuízo com alguma conquista territorial.
É esta a equação que já torna prescindível outro pilar bolsonarista de ocasião, sem qualquer fundação orgânica, o guedista, escorado no terreno da elite: o de um governo reacionário, comandado por um populista, liberal na economia. Paulo Guedes está prestigiado — quer comunicar o desagravo de Bolsonaro ao ministro da Economia. O gato subiu no telhado —o que comunica a necessidade de fazer tal gesto.
O presidente nunca foi crente da fé liberal. Ao contrário. Se, porém, o santo lhe promete um milagre, e se essa promessa arrebanha os que podem reformar a igreja, por que não se mudar para o templo e colher o dízimo enquanto se espera — um pouco — pela graça? Vai que o santo entrega… Não entregou. E ainda veio a praga.
O presidente é Brasil Grande. Toma gosto por gastar. A empreitada de enfrentamento da Covid-19 deu o ensejo. Abriu a porteira. A política econômica desenvolvimentista vende um milagre bolsonarista e tem como principal vitrine um vigoroso auxílio à população pobre, inclusive no Nordeste, extrato dasociedade ao qual Bolsonaro nunca se voltou; mas que, segundo apontam pesquisas, em função da ajuda emergencial, o Bolsa-Família do Jair, ora segura a sua popularidade em patamar competitivo.
Bolsonaro troca de pele. E aposta em novo chão.