Será erro subestimar Bolsonaro à luz do que expressam as urnas
A eleição municipal será o menor dos problemas de Bolsonaro. Há exagero em nacionalizá-la, em responsabilizá-lo diretamente pelo derretimento daqueles que apoiou; talvez com o intuito — politicamente legítimo — de lhe colar derrotas. Ok. É do jogo. Ele perdeu. Os candidatos pelos quais pediu foram mal. Mas que não se leia na fotografia projeção de fraqueza. Será erro subestimá-lo — senhor da máquina federal — à luz do que expressam as urnas.
Será erro, aliás, não contar com a aceleração do populismo bolsonarista como resposta ao que manifestaram as urnas. Chegarei lá.
A experiência da pandemia foi a grande eleitora. Haveria um ensinamento aí. A sociedade escolheu não tomar riscos, numa espécie de ressaca de 2018 antecipada pelos efeitos da peste. Mas essa não é lição para um sectário personalista como Bolsonaro; para quem só uma questão interessa: qual a carga dos fracassos de aliados sobre sua reeleição?
À análise política cabe avaliar até que ponto 2020 condicionaria 2022. De partida: dificilmente a peste estará entre nós daqui a dois anos, mas respostas a seu flagelo, como um Bolsa Família turbinado, provavelmente sim. Não é pouco, dada a natureza imediatista-utilitarista do voto. E a aposta de Bolsonaro permanecerá a mesma. A única que pode fazer: defrontar-se novamente com Lula, ou um cavalo seu, e forçar o eleitor a escolher — de novo — entre rejeições.
Alguém dirá que haveria outra lição para o presidente desde as urnas: a inexistência de estrutura partidária a cobrar preço alto, sendo um equívoco supor que as circunstâncias lava-jatistas de 2018 — o auge da criminalização da política — se repetirão sempre. Essa reflexão, porém, importa para uma Zambelli e outros parasitas. Não para Bolsonaro. Ele não é líder de movimento orgânico baseado em representação política. É o corpo de fenômeno reacionário autocentrado, que despreza a democracia representativa, que depreda o sistema partidário, e que até pode beneficiar algumas de suas franjas, ou muitas, como há dois anos, mas que é ele e só ele, para ele e apenas ele.
Fala-se na força revigorada do centro emergindo em 2020. É um falso poder; esperança deforme. Ao menos por ora, já que sem canalização. Bons resultados — do DEM, por exemplo — aos quais não corresponde a ascensão de figura capaz de dar cara nacional aos números. Quem é o líder de centro-direita? De centro-esquerda? Sem esses nomes, e não é óbvio que surjam, e presos à busca cafona por um Biden brasileiro, os que se opõem a Bolsonaro, enquanto se engalfinham por rotular uns aos outros, só terão a seu favor a torcida para que seu governo, muito ruim, piore.
Será essa provável piora, contudo, suficiente para derrotá-lo? Ou, em dois anos, haveria como promover poderosa empresa populista que, dando poder de consumo à miséria, empurrasse a explosão fiscal para frente? A pandemia, tão servida como desculpa, desculpa continuaria sendo.
Das urnas em 2020, também saem robustos, partidos como PSD e PP, siglas sem identidade, cuja portentosa capilaridade prática — pergunto — mais facilmente se associaria a um projeto de centro para vencer Bolsonaro e tomar-lhe a cadeira, ou a um programa de Bolsonaro, já sentado no trono, por fazer jorrar renda no Nordeste?
Não existe moderação em Bolsonaro. Há conveniência. A fase populista nunca se opôs ao autoritário essencial. O populismo serve ao autoritarismo. O populismo serve à reeleição, a partir da qual o autocrata poderá se desenvolver desamarrado. Havendo grana, não lhe faltarão sócios.
Bolsonaro não tem como operar na normalidade — o que equivaleria a seu perecimento. Precisa de crises. O chamado Centrão sabe e (mesmo assim) fechou com ele. Não será excesso escrever que a pandemia lhe deu segurança. Não será excessivo afirmar que uma segunda onda lhe garantiria a musculatura competitiva. Seu governo é basicamente o auxílio emergencial. Esse é o seu problema; não a eleição municipal perdida por meia dúzia com quem fez lives: assegurar que haja dinheiro para lhe bancar o populismo, manter os parceiros satisfeitos e impulsionar um governo caótico à reeleição. (Não é impossível —fracassando o golpe de Alcolumbre — que logo tenha um presidente da Câmara para chamar de seu.)
O recrudescimento da doença —já disse Guedes —imporia a prorrogação do auxílio. Seria, pois, o caso de o esfomeado brasileiro torcer pelo agravamento da circulação do vírus; de modo a ter a segunda onda de arroz à mesa. Seria também o caso de desconfiarmos de o governo torcer pelo recrescimento da pandemia, com o que bancaria a própria existência —de resto defendida a popularidade do presidente. Faz sentido.
Um estado de calamidade longevo para um governo permanentemente calamitoso. Gatilho para alimentar a guerra contra governadores, limpar o campo para admitir a vacina e chancelar a rolagem da situação orçamentária excepcional; que prorrogaria o auxílio, aliviando o liberal-guedismo de explicitamente romper com o teto, além de lavar —com a escusa da crise derivada da peste — as cores aberrantes da incompetência em gerir o país.
Populistas, autoritários, incompetentes e irresponsáveis são eleitos (e reeleitos) o tempo todo. As cartas estão postas. Não sejamos os negacionistas.