O governo apresentou uma carta de intenções
O governo apresentou a reforma administrativa. Apresentou? Que reforma? Li. Reli. E só achei capa. Ou melhor: só encontrei sumário. Estão lá, enunciados, os capítulos; inclusive os impopulares — que a turma do Ministério da Economia chamou de “politicamente sensíveis”. Há até boas ideias; bons princípios sobre a necessidade de redimensionar um Estado obsoleto, de existência atual não injustamente percebida como para tão somente se autossustentar. Mas é apenas isto o que se anunciou como reforma remetida ao Parlamento: um índice do que virá. Um dia. Porque carne mesmo, matéria — os capítulos do livro: não vieram.
Já sabíamos que a reforma prometida há mais de ano — travada e boicotada pelo próprio presidente corporativista da República —só atingiria os servidores do futuro. Impacto fiscal imediato: zero; e bote década até que algum efeito haja. Ok. Sabia-se. Soubemos na semana passada, porém, que a reforma administrativa prometida há mais de ano, e desde então prontíssima como parte de operosa linha de montagem de projetos — vendida como pujante e revolucionária —, não estava pronta. Ou, se um dia pronta esteve, mais não está.
O governo apresentou uma carta de intenções. O programa de uma reforma administrativa adiada. O Ministério da Economia tem se especializado nisto: em lançar fatia; a primeira sendo sempre mui modesta. Foi assim também com a tributária. Não deixa de ser estratégia politicamente esperta. Mostra-se aquele pedaço miúdo — com a promessa de que o bolo todo virá à mesa. Um dia. E o pessoal engole. Para o funcionamento intestinal do mercado: mata a fome e faz girar.
“Você está sendo muito duro com a proposta” — dirá um leitor. Não estou. (Que proposta, aliás?). “A reforma cria categorias e limita as carreiras que terão mantida a estabilidade” — argumenta-se. Jura? E onde está a lista que discrimina os que serão prejudicados e os protegidos? “Calma. Isso virá numa etapa posterior.” Entendi. “A reforma reduz salários iniciais, define formas para avaliar desempenhos e reestrutura cargos.” Uau! Que capitalista! Regras para mérito e para otimizar funções. E ainda reduz os salários de partida. Onde está isso? Quero ler. “Calma. Apenas numa fatia adiante.” Certo.
Compreendi. Temos a ousada reforma vou enfrentar os problemas e tocar em questões delicadas, mas só depois de amanhã; o sumário indicando que, quando (e se) baixar, a lâmina liberal-guedista cortará apenas dos futuros servidores, como médicos e professores, que não compõem carreiras ditas de Estado; resguardados todos os tipos graúdos, os que ganham mais. Coragem padrão.
Ante toda a propaganda sobre a robustez do que seria um projeto, o que se apresentou foi uma palestra sobre reforma administrativa, destinada a jogar para a galera. Soprou-se o apito. Evidente está que essa é a PEC de um governo que lava as mãos. “Me pressionaram para entregar. Aí está. Fiz a minha parte. Agora é com vocês.” Um movimento narrativo para alimentar a tia do zap.
Uma jogada que, na prática, cria um sistema de travas primoroso. Conforme explicaram os técnicos do ministério: se a primeira fase andar, envia-se a seguinte. Mas como se avançará na aprovação do sumário de um livro sensível, sem que se conheça a íntegra do texto? Quem passa cheque em branco assim? Como se levantam os fundamentos de uma casa sobre terreno pantanoso, se ignorados são os cálculos de engenharia para a construção que virá acima? Difícil fazer progredir o que se desconhece.
Qual é, a propósito, a lógica de não entregar de uma vez os projetos de lei complementar — que regulamentarão o edifício —, senão para ou disfarçar a incompetência (a incapacidade de formular um projeto complexo) ou, tendo dado já o recado para inglês ver e operar, garantir que a coisa avance lentamente, ou mesmo não avance? Diga-se que gente muito boa defende que não seria necessária uma PEC para tratar dessa matéria; sendo também certo que, por sua própria natureza, uma PEC exigirá mais tempo…
Mas o governo fez a sua parte, né? Não. Não fez. Sua parte seria entregar um projeto de reforma que não fosse parte acanhada. Há um ano, quando se falava em estoque de projetos e fila para execução imediata, engatando uma reforma na outra, jamais se mencionou que esse desfile seria em fatias. Trata-se de novidade. Algum vigor se perdeu. Alguma baixa hormonal na libido liberal houve. Fato. A realidade se impõe. Essa não é — nunca foi — a agenda do governo. (Mas o governo fez sua parte.)
A única concretude deste manifesto de adiamentos é aquela porção — aquele queijinho (azedo, no caso) caído lá no fundo do pastel de vento —que dá poder ao presidente para manipular, sem o aval do Congresso, autarquias e fundações federais, aí incluídos Banco Central, Cade, agências reguladoras e universidades. Ou seja: o que não é promessa concentra força na mão do Executivo e consiste numa espécie de reforma administrativa liberal a serviço da autocracia.
Menos Brasília. Mais Planalto. Parabéns.