O texto situa as Forças não como instituições impessoais do Estado, mas órgãos do governo de turno
A interpretação bolsonarista para o artigo 142 da Constituição merece detido exame, pois sintetiza a mentalidade autocrática que fundamenta o projeto de poder golpista encarnado em Jair Bolsonaro — que tem lastro, como lembra a ameaça de intervenção, ainda em abril de 2018, do então comandante do Exército, general Villas Bôas, à véspera de o Supremo julgar habeas corpus de Lula, e que se expressa tanto em nota formal ou entrevista de militar quanto em ato de grupo extremista atacando o STF (por ora) com rojões.
Projeto de poder impulsionado por um inconformismo essencial: o de o presidente da República, mesmo eleito por 57 milhões de votos, não ter mais poder que os outros Poderes.
As Forças Armadas seriam, pois, o canal por meio do qual resolver, concretamente e para além dos fogos de artifício, essa inaceitação do equilíbrio republicano: a eloquência dos tanques para que a suposta vontade popular fosse respeitada, Congresso e Supremo subjugados por aquele — Bolsonaro — que falaria diretamente ao povo.
O texto constitucional trata da “autoridade suprema” do presidente sobre as Forças — o que passou a ser compreendido como atribuição ilimitada e difundido como explicação de por que haveria hierarquia entre Poderes: o Executivo, sendo o senhor das armas, acima dos demais.
Foi contra essa leitura doente que reagiu Luiz Fux ao explicitar qual seria a delimitação do papel das Forças Armadas. Que não são o quarto Poder. Que não são poder moderador. Que não podem intervir em outro Poder; a prerrogativa do presidente — que o autoriza a empregá-las — não podendo ser usada contra Legislativo e Judiciário.
O conteúdo da decisão é impecável. A forma, porém, monta uma armadilha para o STF. Por que a pressa, se o discurso golpista não tem gatilhos para se materializar agora? Por que correr a uma solução liminar, se o ímpeto golpista busca apontar ativismo para alegar golpismo alheio e se vitimizar-legitimar? Por que não proteger a Corte e robustecer uma exposição magistral dirigindo-se ao colegiado, no colegiado, para ratificação do colegiado?
Se estão os ministros preocupados em preservar a ordem democrática, a melhor maneira será com um choque de plenário. É como o tribunal pode se blindar — movendo-se em conjunto, controlando e baixando o grau da febre monocrática. A armadilha a que me referi, a arapuca da fulanização: as decisões individuais — sobretudo se relativas a outros Poderes — como convite a que um populista autoritário reaja, sob a lógica personalista, chamando aquele de quem precisa como inimigo para a briga de rua.
Fux foi mais um a se lançar ao corpo a corpo. Como resposta, Bolsonaro divulgou nota também subscrita, gravemente, por Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, aquele que dirige as Forças Armadas.
Eis o trecho que importa — o governo incorporando a distorção autocrática do artigo 142 a suas manifestações oficiais, Exército, Marinha e Aeronáutica apregoados como braços do golpismo bolsonarista: “As Forças Armadas não cumprem ordens absurdas, como, por exemplo, a tomada de poder. Também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”.
Não há qualquer dubiedade na mensagem. O texto situa as Forças não como instituições impessoais do Estado, mas órgãos do governo de turno. O recado é claro. O impeachment, por exemplo, é julgamento político. Tem lugar no Parlamento, em ação sob controle do Supremo.
O ministro da Defesa —tragando as Forças Armadas — diz que não aceitará impeachment contra Bolsonaro, recurso previsto na Constituição, e que o consideraria tentativa de tomada de poder? Sim.
Quando do impedimento de Dilma Rousseff, grupos políticos acusaram golpe contra a presidente — e as Forças Armadas, corretamente, não se envolveram. Por que se pronunciam agora, ademais se nem processo há, senão para informar à sociedade que têm partido?
O ministro da Defesa — arrastando as Forças — diz que um julgamento do TSE poderia ocorrer “ao arrepio das leis” para a tomada de poder? Sim.
Quando julgou-se, por exemplo, a chapa Dilma/Temer, grupos políticos acusaram golpes de todos os lados — e as Forças Armadas, corretamente, não se meteram. Por que se pronunciam agora, ademais em litígio que toca num general, senão para informar à sociedade que têm partido?
Em entrevista à “Veja”, o general Ramos, da Secretaria de Governo, falou sobre a implausibilidade de um “julgamento casuístico” tirar do poder um presidente eleito com 57 milhões de votos. Deu exemplo: “Um julgamento do TSE que não seja justo.”
E o que determinaria o que será justo? A aplicação do artigo 142 conforme pregado pelo bolsonarismo. Que não é só Sara Geromini. Que também vai fardado. Que avisa — né, general Ramos? Para que o “outro lado” não estique a corda. Qual é o outro lado? Quem é a oposição segundo esse inconformismo? A República.