Carlos Andreazza: Colegialidade de ocasião

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares.
Foto: STF
Foto: STF

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares

A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.

Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.

Debatamos a questão. Mas sem embustes.

Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.

Não é todo dia que o tribunal se depara com a demanda por liberdade de um traficante que comercia toneladas de cocaína. O Supremo não precisaria deliberar sobre a não automaticidade da lei se Marco Aurélio tivesse trabalhado. Sua consulta — ao juízo de primeiro grau — sobre o processo teria bastado para que o juiz responsável pela prisão se visse provocado a renová-la. Chama-se bom senso. Algo que poderia ajudar a corte constitucional a não legislar tanto. Porque, afinal, a disciplina — talvez o menor dos males — que o STF assentou sobre como se comportar (blindar, na verdade) diante do artigo em xeque não deixou de ser mais uma invasão no terreno da atividade legislativa. Menos mal também porque, ainda que legislando, o Supremo acabou por avalizar a constitucionalidade da (boa) lei.

Não pode passar despercebida a proposição esperta que, a propósito da leitura do artigo 316 do CPP, tentou encaixar Alexandre de Moraes; segundo quem, havendo, contra o indivíduo preso preventivamente, condenação em segundo grau, não seria necessária a revisão da cautelar a cada noventa dias. Isto mesmo: o ministro, sem corar, tentava erguer um puxadinho para fazer valer de novo a prisão após condenação em segunda instância. Não prosperou. Ainda.

Prosperou, porém, a derrota, dura, de Marco Aurélio — exposto, sem dó, pelos pares. Um decano jogado ao mar. Não se pode dizer, entretanto, que Luiz Fux tenha vencido. O placar engana sobre o que foi o jogo. O tribunal fez a escolha pelo improviso menos danoso à sua imagem. Só por isso endossou, cheio de ressalvas, a intervenção — ilegal e autoritária — de seu presidente. Fux a chamou de excepcionalíssima. Mentiu.

O recurso autofágico — ministro suspendendo liminar de ministro — tem sido usado com frequência. Dias Toffoli usou. Idem o próprio Fux, agora tão dedicado a valorizar a colegialidade. Ou não terá sido ele o — censor, e censor prévio — que sustou decisão, perfeitamente legal, de Ricardo Lewandowski, que autorizara uma entrevista de Lula desde a prisão? Este Fux que ora vem, cheio de mídia, para combater a febre monocrática, outrora censor monocrático, sendo o mesmo que por quatro anos se sentou sobre liminar — monocracia corporativista de próprio punho — que garantiu auxílio-moradia para juízes e procuradores. Conta bilionária.

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares, como se os ministros fossem birutas, embasadas pelo vento influente, oportunista, de ocasião, não raro com a intenção de jogar para a galera, não raro fora da lei.

A suspensão discricionária de Fux da liminar bizarra de Marco Aurélio — Supremo comendo Supremo — se baseou em lei, a 8.437, que absolutamente não lhe autoriza o ato; como sem qualquer lastro legal foi a decisão de Barroso pelo afastamento do senador Chico Rodrigues. Assim vamos. Ademais sob o risco de, como forma de controlar a convulsão das canetadas monocráticas, impor-se uma tirania da colegialidade que, na prática, resulte em restrição ao habeas corpus.

Cuidado. De nada adiantará um choque de plenário se houver escassez de juízes.

Privacy Preference Center