Não há dúvida de que Bolsonaro tenha responsabilidade sobre as mortes
O bolsonarismo é uma máquina para a ruptura. Um fenômeno reacionário que fareja oportunidades por meio das quais se enraizar e corroer. Uma pandemia, por exemplo. O que ofereceria melhores condições para a aceleração do rompimento de nosso tecido social do que o estado de calamidade decorrente da mobilização por enfrentar uma peste agressiva e desconhecida?
A história do bolsonarismo nesses meses, desde março, é a história da guerra cultural batalhada sobre corpos; em que, afinal, o fato foi desacreditado, desinformação em desinformação, até a inexistência, ali desde onde tudo será versão.
Nesse período até que chegássemos aos 100 mil mortos, a indústria bolsonarista avançou sua forja de teorias da conspiração. Ou teremos esquecido, vírus já entre nós, de o presidente acusando fraudes — teria até provas — no processo eleitoral de 2018?
Foi nesses cerca de cinco meses que Bolsonaro conseguiu implantar o estado da arte para a desconfiança entre nós; quando, contaminada a fé pública, não acreditamos que ele estivesse infectado pela Covid-19; quando supusemos que o sujeito mentisse — manipulando a própria saúde — para colher benefícios políticos ainda ocultos.
Um presidente que aproveitou o clima de exceção para não apenas aviar sua troca de pele, deixando as carcaças eleitorais lavajatista e guedista no caminho, mas também para afiar seu cerco autocrático às instituições. Ou não estará aí — implantado enquanto discutíamos uma possível polícia política a partir do aparelhamento bolsonarista da PF — um Ministério da Justiça que produz dossiês contra críticos do governo?
Ou já teremos apagado da memória que foi nesse intervalo que o golpismo bolsonarista encontrou picada para testar as instituições sobre uma perversão do artigo 142 da Constituição, de súbito apregoado para estabelecer as Forças Armadas como poder moderador a serviço do Executivo?
Quem se lembra de o presidente discursando diante do QG do Exército para aglomerados em cujas manifestações se lia “Intervenção militar com Bolsonaro no Planalto”? Quem não se recordou dessa passagem ao ser informado, segundo a revista “Piauí”, de que houve, em maio de 2020, o dia em que o presidente declarou que interviria no Supremo?
A ação de Bolsonaro nesse período foi consciente. Não há dúvida de que tenha responsabilidade sobre as mortes. Um vírus traiçoeiro, de letalidade antecipada noutros continentes — e o sujeito não apenas buscando o corpo a corpo como também estimulando, em palavras, que desprotegidos o fizessem. Haviam morrido 5 mil brasileiros. E assim ele — como um sociopata — reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.
Leitor, atenção: o presidente, em abril, questionou por que as escolas estavam fechadas. Repito: em abril; não agora quando, ainda paralisadas as aulas, discute-se alguma retomada. No mesmo abril, Bolsonaro afirmou que, segundo parecia, o vírus começava a ir embora. Nessa época, vendendo a ilusão da imunidade para a juventude, recorreu a seu passado de atleta para desdenhar da gripezinha. E, comerciando ignorância no mercado da miséria brasileira, multiplicou heróis da resistência entre os muitos entre nós que, mergulhados no esgoto por obra de um país do século XIX, teriam anticorpos contra a peste porque habituados ao cocô. Tudo seria resolvido se enfrentássemos o problema como homens — declarou o mito.
O presidente: um agente para o conflito que conseguiu levar o seu nós contra eles total para o terreno imoral de uma oposição entre saúde pública (afetada preocupação elitista) e saúde econômica. Do que derivou haver Bolsonaro difundido um vídeo falso sobre desabastecimento de comida. Ele era a voz em defesa da economia popular, mas foi com os barões do capitalismo de estado que armou aquela blitz, dentro no STF, em nome da tese de que “o remédio não pode ser pior que a doença”.
Um curandeiro, o presidente, que oferece placebo ideológico — o remédio da direita — como se fosse o corpo de Cristo contra o vírus chinês. Ele é o ministro da Saúde. Fazendo o Exército de mula. Baixando num general da ativa, como se seu cavalo fosse, para o exercício de suas crendices populistas; para ver se colava um pacote de sonegação e maquiagem de dados oficiais sobre vítimas da doença.
Bolsonaro não faz milagre. Tampouco é coveiro. Investiu, porém, em seu futuro apostando em cavar o buraco em que nosso cansaço descansaria — apostando mesmo, diante do mantra das mil mortes diárias, em nossa anestesia. Apostou em que nos resignaríamos como as emas do Alvorada ante a “vida que segue”.
Para efeito de curto prazo, com vistas a 2022, não é improvável que esteja certo. Vê nova base social a explorar, e já botou o pé na estrada para cortejá-la. Vai gastar. Guedes que se vire. É bem possível que chegue à eleição com força. Certo é que seu verbete já está inscrito na história universal da infâmia.