Moro, valor absoluto, é o combate à corrupção
A ideia — de recriar o Ministério da Segurança Pública — existe, e há muito. Quando vazou, em 2019, o presidente reagiu como de costume: atacando a imprensa. A imprensa, porém, estava certa. A notícia procedia. Não pode ser considerada novidade agora. A novidade é ter sido transmitida — agora — pelo próprio Jair Bolsonaro. Esse é o fato relevante, do qual deriva a questão: por que pôs o assunto em pauta?
Ao ponto: a improvável recriação do ministério não importa; importante é a divulgação da ideia, ato que compõe um método de exercício de poder para mostrar quem tem o poder.
A ideia é um “estudo”. Né? A pressão pela volta do ministério, porém, é real e tem fundamento na disputa pelo controle da Polícia Federal. O cargo é cobiçado por Anderson Torres, secretário de Segurança do DF e articulador do encontro de secretários da área com o presidente — reunião para a qual Bolsonaro não convidou Sergio Moro, na qual sabia que se reivindicaria o restabelecimento da pasta e cuja transmissão ao vivo autorizou.
Torres é muito próximo do ex-deputado Alberto Fraga, que é amigo íntimo do presidente e abertamente candidato a chefe do ministério reclamado, alguém que se sentiu à vontade em dar entrevistas desqualificando a competência de Moro para cuidar de segurança pública. Que tal?
O jogo é feio. E o modus operandi bolsonarista, instrumentalizando a ambição de oportunistas, é conhecido: disparar uma ideia, distribuir recados, jogar iscas, testar reações —e depois retroceder. Esticar a corda ventilando uma possibilidade, alcançar o pretendido — e depois afrouxá-la. Num só lance, mede-se a reação da sociedade, especialmente da base do bolsonarismo robustecida pelos fiéis do lavajatismo; colhe-se o alimento decorrente do atrito com a imprensa, o presidente mobilizando seus bate-paus para desqualificar o jornalismo que lhe reproduzira as palavras; e se difunde, no caso, a mensagem de autoridade destinada ao ministro: “Quem manda sou eu”.
O alto grau de traição a Moro contido em Bolsonaro simplesmente cogitar — publicamente — a recriação do ministério só pode surpreender quem não estuda o comportamento do presidente. Moro — com projeto de poder próprio — não teria saído do Judiciário se para comandar um Ministério da Justiça esvaziado, sem a PF. Saiu porque Bolsonaro lhe prometera a Segurança Pública. Considerar tirar-lhe isso é pernada per se. É também, entretanto, produto de cálculo político; que antecipa os cenários eleitorais que passam pela cabeça do presidente — e ele só pensa em reeleição.
Bolsonaro viu a entrevista de seu ministro ao “Roda Viva”. Moro se comportou como político e defendeu (assim plantaram em sua cabeça) pouco o chefe; postura autônoma a que se soma o modo independente — inegável afronta à hierarquia — como reagiu à sanção de Bolsonaro ao juiz de garantias. Moro se expôs nas duas ocasiões, movendo-se para se desvincular, e colheu ótima repercussão para si. O presidente reagiu: “Você depende de mim”.
Interessante, no entanto, é refletir sobre o que pensará Moro a propósito dessa dependência: “Eu ainda dependo de você”. O ministro sabe que seu horizonte se expandiu para além de uma cadeira no Supremo. Ademais, já tem — entre outros — um “In Fux we trust” naquele tribunal.
Tendemos a nos ater somente ao que perderia Moro deixando o governo. Mas quem pode imaginar as consequências para o governo de perdê-lo?
Bolsonaro foi eleito; aquele que soube captar eleitoralmente o espírito do tempo lavajatista e se posicionar como a exceção numa classe política criminalizada. O espírito do tempo, contudo, é Moro. Bolsonaro é expressão retórica do combate à corrupção.
Moro, valor absoluto, é o combate à corrupção; o indivíduo, aquele que prendeu Lula, que encarna o sentimento de vingança do brasileiro contra um sistema que considera bandido e opressor.
Moro, o justiceiro, é a face do combate à corrupção como a salvação do país; e a corrupção, segundo exprime o povo, é o maior problema do Brasil. Moro tudo pode. Bolsonaro é aquele que pode trair — alô, Flávio! — o conjunto de desejos que o elegeu.
Há uma dinâmica espiritual autoritária — a mesma de 2018 — condicionando esse tabuleiro. Essa dinâmica ora trabalha por Moro. Por Bolsonaro, registre-se, trabalha Paulo Guedes. O símbolo Moro, ícone jacobinista, é uma ameaça ao presidente. A rigor, e as pesquisas de popularidade assim indicam, a cada vez que Bolsonaro faz gesto percebido como hostil a seu compromisso com o combate à corrupção, tal gesto é também percebido como uma traição a Moro, que cresce.
Se essa corda arrebentar um dia, para enfrentar Moro, Bolsonaro precisará entregar muito emprego. Briga pesada. A única certeza: não seria contenda de democratas.