Edison Veiga | DW Brasil
Oficialmente, foram 3,5 mil tiros disparados em cerca de 20 minutos. Era uma sexta-feira, 16h20 do dia 2 de outubro de 1992, quando 341 policiais da Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo foram enviados para conter uma rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, no Complexo do Carandiru. Entraram com cães, bombas e armas pesadas.
O saldo da operação, 111 mortos, todos detentos, fez com que o episódio entrasse para a história com o nome de Massacre do Carandiru. Evidências posteriores confirmaram que presos foram fuzilados com armas como fuzis AR-15 e submetralhadoras HK e Beretta. Não raras vezes, aquele dia é lembrado como o ápice da falência do sistema prisional brasileiro.
Três décadas depois, a chacina protagoniza uma guerra de narrativas, tem consequências tanto na reorganização do sistema prisional como na atividade criminosa e está presente no imaginário coletivo por meio de livros, filmes e músicas.
Mais violenta ação policial em penitenciária brasileira
O verbete dedicado ao tema na Wikipedia, por exemplo, foi alvo recente de vandalismo virtual. No último dia 26 de setembro, a descrição do evento na enciclopédia colaborativa estava editada como “A Limpeza do Carandiru foi uma entrega de 111 alvarás celestiais que ocorreu no Brasil”. O texto foi corrigido no mesmo dia.
Em 1997, o grupo Racionais MC’s gravou o rap Diário de Um Detento, contando sobre o massacre. Em Haiti, de 1993, Caetano Veloso fala sobre “ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina: 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”.
Considerado a mais violenta ação policial dentro de uma penitenciária brasileira, o massacre ocorreu após uma rebelião dos presos, em que colchões foram incendiados e celas depredadas. Depois da repercussão da chacina e muita pressão de ativistas de direitos humanos, houve uma revisão da política prisional, sobretudo no estado de São Paulo.
“Quando o novo governador assumiu [Mario Covas, em 1995], sua gestão iniciou projetos de reforma do sistema penitenciário. Foram então construídos mais presídios com menos quantidade de vagas, um limite de 800 pessoas por unidade”, explica o jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e autor de, entre outros, A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil.
O Carandiru tinha 7 mil presos. Com a nova política, São Paulo passou a ter unidades prisionais espalhadas por todo o estado. O número de presídios saltou de pouco mais de 30 para os atuais 179. “Também houve uma terceirização gradual da gestão interna dos presídios”, acrescenta Paes Manso.
PCC, uma das consequências
Na outra ponta da história, os criminosos também passaram a se unir mais, seja por receio de novos massacres, seja por sede de vingar o sistema. A proliferação de estabelecimentos prisionais, se diminui o tamanho dos grupos, ao mesmo tempo favorece a criação de mais lideranças, fortalecidas frente a suas comunidades pequenas.
“Em 1993 foi criada a facção paulista, o PCC [Primeiro Comando da Capital], justamente com um discurso oficial de proteção dos presos, ‘aqueles que o Estado quer exterminar, massacrar'”, pontua o pesquisador. “No discurso estava presente a ideia de que, ‘para que eles não nos matem, vamos fortalecer o crime e bater de frente contra nosso inimigo maior: o sistema’.”
Paes Manso vê no fenômeno o surgimento de “um novo modelo de profissionalização do crime”. E o sucesso do PCC, que em poucos anos se tornaria a maior facção criminosa do país, seria a prova de que essa união de criminosos conseguiu o que almejava. Uma organização que funciona ao mesmo tempo como um sindicato e uma cooperativa do crime.
“O PCC não é o resultado direto do massacre do Carandiru, mas usou o massacre para elaborar seu discurso, seu estatuto”, contextualiza ele.
Repercussão na formação da PM
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, o coronel reformado da Polícia Militar (PM) de São Paulo e consultor de segurança José Vicente da Silva Filho discorda dessa ideia. “Não se pode dizer que o massacre resultou em maior união dos presos. Qualquer estabelecimento prisional do mundo acaba, inevitavelmente, propiciando um processo de socialização e de agrupamento, de autoproteção ou para disputar alguns privilégios dentro do sistema. Facções sempre existiram”, comenta ele, que atua como professor na Polícia Militar e é conselheiro da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro.
Silva Filho analisa que uma importante consequência do episódio foi um maior investimento na formação dos quadros, sobretudo de gestão, da PM paulista. “A polícia foi alvo de críticas tão intensas, severas e contínuas [depois do ocorrido], não só sobre aquela tropa… [As críticas eram quanto ao] seu despreparo, violência, descontrole, diziam a academia e diversos órgãos, que isso acabou impactando nos policiais, que acabaram se inibindo e passando a operar com mais cautela”, defende ele.
O coronel argumenta que, alguns anos mais tarde, isso influenciou no investimento em melhor formação da gestão das tropas. “Foi um grande impulso, intensificou-se a preparação dos policiais, com revisão da estrutura, dos valores, da formação. Hoje a PM instituiu um mestrado e um doutorado para seus quadros”, comenta. “Melhorou substancialmente a capacitação da alta gestão em um organismo complexo como é a PM.”
Disparos com intenção de matar
O massacre provocou a queda do então secretário de segurança pública de São Paulo, Pedro Franco de Campos, apontado como o responsável pela ordem de invasão do presídio — ele foi substituído por Michel Temer no cargo. O então governador Luiz Antônio Fleury Filho reconheceu, na ocasião, que a ação policial havia sido criminosa.
A repercussão internacional fez com que o Brasil fosse denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA).
O coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006), que comandou a operação, foi a julgamento em 2001, depois de um processo de 8 anos e mais de 20 mil páginas. A perícia deixou evidente que 75% dos presos mortos estavam dentro das celas, e os tiros haviam sido disparados de fora para dentro, evidenciando que os disparos haviam sido feitos fora de situação de confronto e com intenção de matar.
Guimarães acabou condenado a 632 anos de prisão, mas teve o direito de recorrer em liberdade. Ele foi eleito deputado estadual em 2002 (com o número 14.111, evidenciando os 111 presos executados) e, em 2006, teve sua sentença anulada e foi absolvido pela Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. O coronel foi assassinado em setembro de 2006, encontrado morto em seu apartamento com um tiro no abdômen.
Muitos condenados, mas ninguém preso
Outros policiais envolvidos também foram a julgamento, em grupos distintos. Em 2013, 23 militares foram condenados a 156 anos de prisão. Depois, 25 outros policiais receberam a sentença de 624 anos. No ano seguinte, 10 outros oficiais acabaram condenados: nove a 96 anos, e um a 104 anos de detenção. Em seguida, na última etapa, 15 policiais foram sentenciados com 48 anos de prisão.
Todos puderam recorrer em liberdade. “Percebeu-se a dificuldade de individualizar a participação [de cada um no episódio]. Os crimes vão acabar prescrevendo”, analisa o coronel Silva Filho. “Fato é que, até hoje, ninguém foi preso ainda”, lembra Paes Manso.
Estudioso de fenômenos de violência urbana, o jornalista diz que o Carandiru deixa um lição: a de que não está no sistema prisional a solução para conter a criminalidade. “Em determinado momento, cidades superpovoadas acreditaram que prisões iriam resolver o problema, que quanto mais pessoas presas menos riscos a gente ia ter de andar na rua. Mas isso começou a se mostrar uma solução furada, que cria outros problemas”, aponta Paes Manso.
“Temos 900 mil presos [no país] e a sensação de insegurança continua grande, com conflitos e a cena criminal muito forte. E o Brasil continua insistindo nesse modelo, dobrando a dose do remédio que está sendo nosso veneno”, acrescenta.
Para ele, é preciso agir de “forma mais estratégica” e “com inteligência” para reduzir a criminalidade, e não adotar uma postura de “guerra contra o crime”. “Mas não se consegue evitar essa dinâmica”, afirma.