É extremamente oportuna a crítica de Hamilton Garcia ao documento congressual do PPS (O impasse programático e o desafio da esquerda democrática – reflexões para o 19º Congresso do PPS). Aponta, já no seu título, a necessidade de a esquerda democrática avançar na formulação de uma estratégia programática mais clara, condição necessário para o diálogo profícuo com a sociedade e com as demais correntes políticas. Reconhece também, no corpo do texto, a vulnerabilidade dos partidos que pretendem representar esse campo, PPS incluído, no que se refere a esse quesito. O debate político, também nesses partidos, tem sido insuficiente frente às necessidades de formulação política, numa conjuntura que muda rapidamente.
Concordo com boa parte do texto. Enumero, sem maiores comentários, os pontos que me parecem concordes com minha avaliação: a questão democrática não se esgotou com a conquista do estado democrático de direito; o desenvolvimento das forças produtivas no país é uma questão a ser enfrentada; essa questão não encontra solução apenas por meio do mercado, mas demanda intervenção e regulação permanente do Estado; o caminho autarquizante é uma miragem, uma vez que a integração à economia mundial e, portanto, ao processo de globalização, é imperativa.
Concordo também com a necessidade da crítica ao velho desenvolvimentismo, particularmente a seus aspectos autoritários e excludentes. Avançar nessa crítica me parece urgente, inclusive porque acabamos de passar por um experimento econômico que se reivindicava herdeiro dessa tradição, com os resultados que conhecemos: em vez de crescimento, recessão; em vez de proteção à indústria nacional, aprofundamento da desindustrialização.
Vou discutir com mais vagar os pontos relevantes de que discordo, até para precisar um pouco mais minhas divergências com o texto. Formulo assim o primeiro ponto: é possível e desejável um período de proteção à economia nacional para habilitá-la à integração na economia mundial em condições isonômicas com os demais países, como parece advogar o texto de Hamilton Garcia? Segundo ponto: pode a política cambial servir a esse fim?
Tenho como premissas nessa discussão que o processo de globalização 1) tem sua origem na revolução científica e tecnológica em curso desde a década de 1970, 2) teve como consequência mais relevante a queda das barreiras à mobilidade de capitais pelo mundo e 3) à maior mobilidade de capitais correspondeu a redução da autonomia dos estados nacionais na formulação de suas políticas econômicas.
Formou-se sobre o mundo uma nuvem de capitais capaz de tomar em pouco tempo o rumo que mais lhe convém. Nenhum país pode assumir o ônus de sair de suas rotas, sob pena de ver a migração de suas próprias empresas para essa nuvem. Afastada por contraproducente a tentativa de controlar mediante normas internas esses movimentos, resta aos estados nacionais trabalhar em sistemas de regulação internacional e/ou adaptar suas políticas aos parâmetros por eles definidos. Políticas de juros e de câmbio estão sob ajuste há décadas no mundo. Discutem-se hoje os primeiros indícios do que pode vir a ser um novo salto nessa direção: uma tendência à redução radical da carga tributária que, se confirmada, imporá novos desafios aos países em desenvolvimento.
A regulação possível sobre esses movimentos depende cada vez mais de acordos internacionais e a legitimidade internacional passa a ser condição da eficácia das políticas adotadas por cada um desses estados. Em concreto, a China, com todo o seu poderio econômico não pode ficar à margem das decisões da OMC, muito menos o Brasil. Nesse fórum a adoção de barreiras alfandegárias com objetivos protecionistas já está condenado. Não existe mais a possibilidade de um período protecionista anterior a abertura comercial, como ocorreu nos países de industrialização antiga.
Estamos condenados a aumentar nossa competitividade enquanto aprofundamos nossa integração à economia mundial.
Ou seja, em vez de um período de proteção para fortalecimento da indústria antes de sua exposição à concorrência, podemos, no máximo, levantar barreiras pontuais e provisórias dentro do leque de medidas considerado legítimo nesse debate: barreiras fitossanitárias, proteção ao trabalho livre e ao meio ambiente, além da imposição de sanções aos países que abrigam paraísos fiscais, tema este cuja discussão recém começa.
Em síntese, é possível, mas não desejável, ficar à margem da economia mundial. Para evitar a situação de autarquia, o Brasil deve seguir a regra do jogo, evitar tanto o subsídio à exportação quanto as barreiras alfandegárias à importação e fazer uso apenas de restrições legitimadas no debate internacional.
Pode a política cambial atuar como sucedâneo da proteção alfandegária? Não sou economista, não tenho, portanto, competência para manejar argumentos técnicos sobre o tema. Do ponto de vista político, contudo, penso que ao menos dois argumentos pesam contra uma política desse tipo. Em primeiro lugar, a desvalorização cambial beneficia as exportações enquanto penaliza, simultaneamente, as importações. Ajuda inegavelmente quem exporta muito e importa pouco, como o agronegócio. Por outro lado, setores da indústria de ponta, dependentes de tecnologia e de importações, como a Embraer, por exemplo, poderiam ficar em situação desvantajosa face a seus concorrentes internacionais e tenderiam a demandar medidas compensatórias adicionais para restaurar a situação anterior.
Mais importante, contudo, é, a meu ver, o impacto de uma política desse tipo sobre o salário real dos trabalhadores e suas consequências políticas. Há alguns anos, Bresser-Pereira estimou em cerca de um terço a perda salarial resultante do ajuste cambial necessário para dar competitividade à indústria nacional. Penso, em síntese, que é impossível pactuar, ou seja, obter o acordo dos trabalhadores, para uma medida desse tipo em condições de informação plena e normalidade democrática. Não é racional aceitar uma perda salarial dessa ordem sem garantia alguma em termos de criação de empregos e aumento de salários no futuro. Os trabalhadores alemães, com salários e condições de vida muito superiores aos do trabalhador brasileiro, concordaram, anos atrás, em limitar suas reivindicações de salários aos ganhos de produtividade. Esse mostrou ser um acordo razoável, possível, portanto, em situação de democracia. Contrariamente, eleger a construção da grande indústria como meta e fazer sua competitividade descansar no câmbio, a qualquer custo, parece-me hoje uma estratégia compatível apenas com regimes autoritários.
Uma estratégia alternativa, que atenda aos requisitos externos e internos de legitimidade, pode ser construída, na minha opinião, a partir das seguintes diretrizes.
Primeiro, perseguir o aumento da competitividade internacional por meio da redução do chamado custo Brasil.
Para tanto, em segundo lugar, concentrar a ação do Estado nas suas atividades fim, o que implica conceder à iniciativa privada, sob a supervisão pública, toda atividade relacionada à infraestrutura produtiva do país.
No presente argumento, atividades fim do Estado são a produção de cidadãos, de empresas e de conhecimento. Produzir cidadãos significa garantir a oferta dos serviços públicos essenciais; produzir empresas, uma política ativa de empreendedorismo e apoio a trabalhadores autônomos, micro e pequenas empresas, além de estímulo ao cooperativismo. Produzir conhecimento significa a operação permanente de programas de estímulo à produção de ciência, tecnologia e inovação.
Em terceiro lugar, uma revolução na estrutura e funcionamento da máquina pública, de modo a maximizar a eficácia, a transparência e a participação do cidadão.
Em quarto lugar, formular e executar uma estratégia proativa de atuação do Brasil nos diversos foros internacionais.