Foi como se Moro estivesse reescrevendo um final de filme
Uma das cenas mais comoventes na história moderna do audiovisual brasileiro está na despedida de um jovem casal, na novela “Totalmente demais”, de Rosane Svartman e Paulo Halm, atualmente em reprise, às 19h, na TV Globo. Aquela é a última noite juntos de Eliza (Marina Ruy Barbosa) e Jônatas (Felipe Simas), no amplo salão de poltronas abalroadas, iluminado por luzes frouxas e com cartazes esquecidos pelas paredes, de um cinemão abandonado onde eles vivem. O rapaz dá à moça, como presente de despedida, a primeira sessão de cinema da vida dela, exibindo pedaços de película que achou por ali e juntou, trechos dilacerados de “Luzes da cidade”, filme de Charles Chaplin, o Carlitos.
Como o final do filme não estava entre os restos que Jônatas havia encontrado, ele conta a Eliza um que ele mesmo inventara. Ela o recusa e cria sua própria versão, o desenlace adorável que julga mais coerente com o que vira e imaginara. Naquela noite, eles finalmente transam, a primeira vez de Eliza. Há tempos não me emocionava tanto com uma construção dramática que, materializando um filme possível, poetizasse de tal maneira o cinema como arrebatamento.
Vivemos num país em que 100 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado no lugar em que moram, a mais de 35 milhões lhes falta água, 12 milhões estão desempregados, e todos morrem de doenças que, em muitos outros países, já foram até extintas.
Quando o governo oferece, a esses cidadãos, um salário emergencial, para que possam continuar a carregar as pedras da sociedade, paga o vexame de descobri-los invisíveis, sem saber onde vivem ou por onde andam, sem nome e, imagine!, sem CPF. Vivemos num país em que a realidade impede qualquer ilusão, em que o cinema, para ser bom e valer a pena, parece condenado a ser cruel.
Vi a entrevista coletiva do ex-ministro Moro como um rompimento com essa hipocrisia social. Ali, um herói da Lava-Jato, com peito para mandar prender um ex-presidente tão popular, nos dizia que se enganara e que jogara fora, sem volta, seus 22 anos de magistratura tão bem-sucedida, em nome de uma ilusão que jurava sincera. Como se Moro estivesse reescrevendo um final de filme com o qual não contara, sem o mesmo entusiasmo ilusionista de Eliza. Mas certamente com a mesma fé no que bate na tela.
Desta vez, o vilão não apareceu em cena, como tantas outras vezes, em tantos outros filmes. Ele reapareceu mais tarde, em mais uma entrevista coletiva em que ninguém tem o direito de fazer perguntas. O presidente Bolsonaro, cercado por seus ministros, alguns muito tensos, negou quase tudo o que o demissionário dissera de manhã. Mas nem tudo. Por exemplo, deixou no ar a história de que exigia tomar conhecimento das investigações do STF no processo das fake news e no das manifestações antidemocráticas. A certa altura, me lembrei de matéria da “The Economist”, a revista de quem acredita que o capitalismo ainda pode se modernizar, chamando-o de “BolsoNero”. Um blockbuster — de produção caseira.
Todo país tem que honrar suas Forças Armadas. Depois dessa pandemia da Covid-19, então, o mundo será necessariamente muito diferente do que foi antes dela. Nossas Forças Armadas, no estado em que estiverem, terão um papel decisivo na construção do novo normal, para dentro e para fora da nação. Mas nosso capitão parece não entender assim, pois está sempre cobrando delas uma espécie de indiscutível apoio pessoal. Logo ele, que foi reformado tão cedo e chamado pelo general Ernesto Geisel de “um caso fora do normal, um mau militar”.
O Brasil precisa encontrar seu rumo, como Eliza e Jônatas procuraram o seu. Com empenho, mas também com uma certa modéstia para saber recuar ou avançar, conforme o que for necessário. O fundamental é que o país se construa comovente e para todos, como esse audiovisual, que Bolsonaro tanto despreza e prejudica. Somos sempre demais.