O mundo de hoje, 50 anos depois de Woodstock, talvez se ria dessa ideia tola de paz e amor
The Woodstock Music & Art Fair não foi bem uma feira, nem se realizou na cidade de Woodstock, no norte do estado de Nova York. Na história da cultura popular do século XX, o evento ficou conhecido apenas como Woodstock.
Embora seu pôster oficial fosse mesmo pretensioso, anunciando “an Aquarian exposition”, em “três dias de paz & música”, sua repercussão junto à juventude americana foi maior do que isso e se tornou incontrolável.
Os festivais de música já proliferavam na América e no Hemisfério Norte do Ocidente, mas Woodstock acabou sendo o maior e o mais importante deles.
Realizado na pequena cidade de Bethel, numa fazenda de gado, Woodstock reuniu meio milhão de pessoas, sem nenhuma condição para isso, entre 15 e 18 de agosto de 1969. Esta semana, portanto, celebramos seu cinquentenário, 50 anos de lembranças que, pouco a pouco, vão se apagando da memória do mundo.
Foi o que pensou um dos organizadores do festival, o empresário Michael Lang, hoje com 74 anos de idade, que tentou montar um novo Woodstock, uma comemoração no mesmo espaço em que ocorreu o original. Algumas das estrelas desse novo espetáculo, já contratadas e pagas, seriam Jay-Z e o Dead & Co, banda herdeira do histórico Grateful Dead. Além de Carlos Santana, uma das poucas 32 atrações de 1969 que topou voltar a Bethel. Mas as bodas de ouro de Woodstock fracassaram, e Lang anunciou, na semana passada, seu cancelamento.
No final agitado da década de 1960, Woodstock foi uma síntese da contracultura em ebulição. Único e lendário, o evento acabou sendo um dos maiores momentos na história da música popular universal. Depois do susto inicial com a multidão aglomerada diante do palco, o público jovem cantou junto com artistas consagrados e conheceu os ícones da música popular de ruptura radical da década seguinte, como Jimi Hendrix e Janis Joplin.
Organizado como um show musical, Woodstock se tornou uma proposta de novos costumes, de um novo comportamento. Uma nova ideologia de paz e amor, o mantra que havia conquistado a juventude como o ideal de uma época e de uma geração.
Nos Estados Unidos, a juventude havia se interessado por política a partir do empenho contra a Guerra do Vietnã, mobilizada pela televisão que trazia, para a sala de jantar dos lares americanos, os mortos e mutilados das batalhas daquele dia em Hanói. Apesar disso ou por causa disso, 1969 foi também o ano do assassinato da atriz Sharon Tate, grávida de um filho de Roman Polanski, morta por fanáticos, autoproclamados hippies liderados por Charles Manson.
O mundo de hoje, 50 anos depois, talvez se ria dessa ideia tola de paz e amor.
Preferimos celebrar o ódio como a arma que leva ao poder e, se possível, à guerra que pode ser militar, comercial ou cultural. Tanto faz, contanto que seja capaz de aniquilar o outro, o diferente de nós, o inimigo. Os que não têm poder, não têm como destruir o adversário. E os que não cultivam o ódio jamais terão poder, jamais serão capazes de dar porrada no outro. Isso é o que de fato parece interessar, em nossos dias.
No Brasil, em agosto de 1969, vivíamos um dos piores momentos de nossa vida política, sob o autoritarismo da ditadura militar. Nessas circunstâncias, era impossível acompanhar a explosão de liberdade convulsiva e fraterna identificada no slogan “paz e amor”.
No máximo, podíamos contar com o vigor de nossa música popular e com a recente alternativa tropicalista. Nossa mais consagradora vitória cultural no período, a Bossa Nova, era a exata negação de Woodstock, uma organização mental de sentimentos e emoções. À frente dela, João Gilberto era o ápice de uma mistura rara e quase divina de perfeição e delicadeza. O que não tinha nada a ver com o agito contracultural de Woodstock.
Enquanto a juventude do país mais rico do mundo caía de boca na insegurança do experimentalismo, desorganizando a produção cultural e as relações humanas, em benefício do ideal de um novo modo de vida, sem noção do que poderia acontecer, no pobre maior país latino-americano lutávamos para melhor organizar nossas cabeças e encontrar um jeito de sobreviver à tragédia que o destino político nos havia preparado. Às vezes parecia outro planeta.