A questão é revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo
Para cinéfilos e cineastas que implicam com o streaming, como uma forma contemporânea de ver um filme, lembro que é bem possível que, não existindo essa plataforma, não tivéssemos como ver títulos que estão arrasando no gosto do pessoal durante a pandemia. Estamos vendo, no streaming, filmes realizados por diretores consagrados, como “Roma”, “Destacamento Blood” ou “O irlandês”, mas também e sobretudo filmes que, de outro modo, talvez jamais víssemos. Como “Lindinhas” ou “O dilema das redes”, alguns dos mais comentados, citados e criticados (que produzem análises) na temporada.
“Lindinhas” (Mignonnes), filme francês dirigido pela estreante Maïmouna Doucouré, trata de adolescentes, em geral de famílias imigrantes, que vivem em subúrbios parisienses, correspondentes às nossas periferias urbanas miseráveis e marginais. Como a Netflix se recusa a fornecer os números de sua programação, ficaremos sem saber quantas pessoas já viram esse filme. Mas, por sua repercussão escrita e falada, podemos considerá-lo um dos grandes sucessos do cinema francês contemporâneo. Não é de hoje que a imigração africana e árabe, na França, tem sido tema de filmes locais de grande qualidade. Agora são os próprios imigrantes, e sobretudo seus filhos, já nascidos no país, que tomam a câmera para contar suas histórias, como em “Lindinhas”.
Fico pensando em quando o cinema brasileiro de moradores de favelas estiver consolidado, quantas descobertas temáticas e de talentos terão sido feitas. Esse tipo de produção, no Brasil, não tem se desenvolvido à altura da qualidade de quem a pratica, pelo simples motivo de que faltam recursos para fazê-lo e estruturas que garantam o curso da vida dos filmes.
É claro que, nesse caso, o principal responsável por tais recursos e estruturas deve ser o Estado. Mas nosso governo não está nem um pouco interessado em ajudar a alavancar o cinema brasileiro já consagrado, imagine aquele que tem que ser descoberto e revelado. Dez anos atrás, num esforço de caráter privado, realizadores que hoje trabalham regularmente em cinema e televisão, como Luciano Vidigal, Fernando Barcellos, Luciana Bezerra, Gustavo Melo, Rodrigo Felha, Manaira Carneiro, Cadu Barcelos e outros foram revelados por “5XFavela, agora por nós mesmos”, projeto construído pelos próprios cineastas moradores de favelas. É inacreditável que nunca mais a experiência tenha se repetido.
Outro filme bombando no streaming é “O dilema das redes” (“The social dilemma”), documentário americano de Jeff Orlowski, lançado pela Netflix no início de setembro e até hoje batendo recordes de acesso e visibilidade. Fruto do esforço de jovens gênios e gênias da cultura digital, dando entrevistas e palpites sobre o tema e o sentido do filme, esse documentário nos põe diante da maravilha tecnológica das redes sociais e dos danos que elas têm causado à sociedade, seja no controle do consumo, seja na condução de políticas nacionais.
A mais espantosa constatação de “O dilema das redes” é que o bem-sucedido apelo obsessivo de uma rede social não é nunca um efeito colateral, mas o próprio projeto e propósito de sua criação. Não é à toa, lembra um dos técnicos no filme, que “as duas únicas indústrias que chamam seus clientes de usuários (users) são a de drogas e a de software”. Entrevistando ex-funcionários do Facebook, Google, Twitter e Instagram, Orlowski nos faz imaginar, pelo que dizem os que estão arrependidos do inferno que criaram, o que devem estar pensando e planejando os que persistem na invasão de nossas mentes, produzida por pequenas e grandes redes sociais.
Não se trata de combater a importância das redes, seu potencial papel de encontro solidário de informação e conhecimento entre seres humanos, de um modo rápido e imediato, um modo mais eficiente. Trata-se de revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo. “O dilema das redes” me faz pensar também no incrível documento de denúncia, escrito por Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook, que ela chamou de “Tenho sangue em minhas mãos”. Mas essa já é outra história.